|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
HISTÓRIA
Documentos levantados por Horacio Verbitsky mostram que militares contaram não só com silêncio mas com ajuda de padres
Livro traça relação entre igreja e ditadura argentina
FLÁVIA MARREIRO
DE BUENOS AIRES
"Tempus loquendi et tempus
tacendi" -há hora para tudo, diz
o Eclesiastes. Ao citar um trecho
de um dos livros mais famosos da
Bíblia, a cúpula da Igreja Católica
na Argentina avaliou, em agosto
de 1976, que era tempo de calar
sobre os crimes cometidos pelos
militares na ditadura (1976-1983).
A menção aparece em uma carta do então presidente da CEA
(Conferência Episcopal Argentina), o cardeal Raul Primatesta, a
uma associação de religiosos
preocupada com a escalada da
violência. Pediam uma declaração da Igreja à opinião pública.
Dias antes, um bispo contrário
ao regime havia morrido num
acidente de carro, que depois se
provou armado. Os religiosos se
queixavam à entidade, correspondente à CNBB (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil),
que a ditadura perseguia e seqüestrava cidadãos e religiosos, e monitorava sermões em paróquias
"não-alinhadas".
Primatesta responde que a Igreja não ignora a situação, mas deve
"calibrar" seus atos: "Convencidos de que há "tempus loquendi" e
"tempus tacendi", ajustamos nossa conduta à busca efetiva do bem
maior dos fiéis".
A carta do cardeal é um dos
quase 1.200 documentos usados
pelo jornalista argentino Horacio
Verbitsky para afirmar que houve
uma relação carnal entre a Igreja e
a ditadura no país, acusada de fazer "desaparecer" 30 mil opositores, segundo estimativas.
No recém-lançado "Doble Juego - Argentina Católica e Militar"
(Sudamericana, 2006), ele diz que
a Igreja sabia dos desmandos do
regime e que, mais que calar, ela
colaborou com seus dirigentes.
Cita papéis em que a instituição
aceita fornecer listas do alunado
católico à ditadura -muitos acabaram seqüestrados-, outros
em que a cúpula promove a relação dos militares com o Vaticano
enquanto diz à Embaixada dos
EUA, em 1978, que o regime já "se
encarregou" de 15 mil pessoas.
Duas igrejas
O livro registra que a Igreja se
recusou a receber as Mães da Praça de Maio. Outro documento envolve o atual presidente da CEA,
cardeal Jorge Bergoglio, apontado
como um dos favoritos na eleição
papal em 2005. Um funcionário
da Chancelaria anota que ele relatou atos "subversivos" de um padre ao regime e sugeriu que negassem um pedido de visto.
"Houve duas igrejas. Uma perseguida, com dois bispos assassinados, e sacerdotes e laicos torturados. A outra manifestou profunda complacência com o que
ocorria, incapaz de defender os
seus", disse Verbitsky à Folha.
Em 2005, ele lançou a primeira
parte da pesquisa em "El Silencio"
(Sudamericana), em que relata
que a Igreja cedeu uma ilha para
que alojassem presos políticos
durante uma visita de observadores internacionais.
Os papéis vêm à tona quando o
debate sobre apoios ao golpe de
1976, que faz 30 anos, se reacendeu. Em novembro, a Igreja criticou o governo Néstor Kirchner e
o acusou de ter uma visão "tendenciosa" ao omitir a violência da
guerrilha e só criticar os militares.
Kirchner respondeu duramente,
mais um lance da relação tensa e
ambígua que mantêm.
Também pela efeméride, a Igreja lançou o livro "Igreja e Democracia na Argentina". Nele, há fortes críticas feitas, em caráter privado, aos militares. Os papéis públicos mencionam as condições
"de exceção" do país, onde não se
podia exigir dos militares a "pureza química dos tempos de paz".
"O jogo duplo estava em fazer
críticas internas, mas não expô-las", rebate Verbitsky. Procurada
pela Folha, a CEA não quis comentar as críticas nem o livro.
No rascunho de um informe ao
Vaticano, em 1984, a Igreja escreve que é "força reconhecer que
houve uma relação estreita (talvez
demasiado) com o governo militar" e que contribuiu para a avaliação "o pedido ou aceitação de
benefícios econômicos".
O sociólogo e professor da Universidade de Buenos Aires Fortunato Mallimaci explica que foi no
regime que a Igreja obteve muitos
dos aportes financeiros que recebe ainda hoje do governo -por
lei, o Estado deve "sustentar o culto católico" na Argentina, são
R$ 9 milhões anuais repassados.
"Foi o general Videla [1976-1981] quem decretou que o Estado
deve pagar salários aos bispos,
bolsas aos seminaristas, ajuda de
custos de viagens. Nada foi revogado na democracia."
Texto Anterior: América do Sul: Esquerda peruana nega apoio a Humala Próximo Texto: Eixo do Mal: EUA preparam ataque ao Irã, diz Hersh Índice
|