São Paulo, domingo, 09 de abril de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

HISTÓRIA

Documentos levantados por Horacio Verbitsky mostram que militares contaram não só com silêncio mas com ajuda de padres

Livro traça relação entre igreja e ditadura argentina

FLÁVIA MARREIRO
DE BUENOS AIRES

"Tempus loquendi et tempus tacendi" -há hora para tudo, diz o Eclesiastes. Ao citar um trecho de um dos livros mais famosos da Bíblia, a cúpula da Igreja Católica na Argentina avaliou, em agosto de 1976, que era tempo de calar sobre os crimes cometidos pelos militares na ditadura (1976-1983).
A menção aparece em uma carta do então presidente da CEA (Conferência Episcopal Argentina), o cardeal Raul Primatesta, a uma associação de religiosos preocupada com a escalada da violência. Pediam uma declaração da Igreja à opinião pública.
Dias antes, um bispo contrário ao regime havia morrido num acidente de carro, que depois se provou armado. Os religiosos se queixavam à entidade, correspondente à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que a ditadura perseguia e seqüestrava cidadãos e religiosos, e monitorava sermões em paróquias "não-alinhadas".
Primatesta responde que a Igreja não ignora a situação, mas deve "calibrar" seus atos: "Convencidos de que há "tempus loquendi" e "tempus tacendi", ajustamos nossa conduta à busca efetiva do bem maior dos fiéis".
A carta do cardeal é um dos quase 1.200 documentos usados pelo jornalista argentino Horacio Verbitsky para afirmar que houve uma relação carnal entre a Igreja e a ditadura no país, acusada de fazer "desaparecer" 30 mil opositores, segundo estimativas.
No recém-lançado "Doble Juego - Argentina Católica e Militar" (Sudamericana, 2006), ele diz que a Igreja sabia dos desmandos do regime e que, mais que calar, ela colaborou com seus dirigentes.
Cita papéis em que a instituição aceita fornecer listas do alunado católico à ditadura -muitos acabaram seqüestrados-, outros em que a cúpula promove a relação dos militares com o Vaticano enquanto diz à Embaixada dos EUA, em 1978, que o regime já "se encarregou" de 15 mil pessoas.

Duas igrejas
O livro registra que a Igreja se recusou a receber as Mães da Praça de Maio. Outro documento envolve o atual presidente da CEA, cardeal Jorge Bergoglio, apontado como um dos favoritos na eleição papal em 2005. Um funcionário da Chancelaria anota que ele relatou atos "subversivos" de um padre ao regime e sugeriu que negassem um pedido de visto.
"Houve duas igrejas. Uma perseguida, com dois bispos assassinados, e sacerdotes e laicos torturados. A outra manifestou profunda complacência com o que ocorria, incapaz de defender os seus", disse Verbitsky à Folha.
Em 2005, ele lançou a primeira parte da pesquisa em "El Silencio" (Sudamericana), em que relata que a Igreja cedeu uma ilha para que alojassem presos políticos durante uma visita de observadores internacionais.
Os papéis vêm à tona quando o debate sobre apoios ao golpe de 1976, que faz 30 anos, se reacendeu. Em novembro, a Igreja criticou o governo Néstor Kirchner e o acusou de ter uma visão "tendenciosa" ao omitir a violência da guerrilha e só criticar os militares. Kirchner respondeu duramente, mais um lance da relação tensa e ambígua que mantêm.
Também pela efeméride, a Igreja lançou o livro "Igreja e Democracia na Argentina". Nele, há fortes críticas feitas, em caráter privado, aos militares. Os papéis públicos mencionam as condições "de exceção" do país, onde não se podia exigir dos militares a "pureza química dos tempos de paz".
"O jogo duplo estava em fazer críticas internas, mas não expô-las", rebate Verbitsky. Procurada pela Folha, a CEA não quis comentar as críticas nem o livro.
No rascunho de um informe ao Vaticano, em 1984, a Igreja escreve que é "força reconhecer que houve uma relação estreita (talvez demasiado) com o governo militar" e que contribuiu para a avaliação "o pedido ou aceitação de benefícios econômicos".
O sociólogo e professor da Universidade de Buenos Aires Fortunato Mallimaci explica que foi no regime que a Igreja obteve muitos dos aportes financeiros que recebe ainda hoje do governo -por lei, o Estado deve "sustentar o culto católico" na Argentina, são R$ 9 milhões anuais repassados.
"Foi o general Videla [1976-1981] quem decretou que o Estado deve pagar salários aos bispos, bolsas aos seminaristas, ajuda de custos de viagens. Nada foi revogado na democracia."


Texto Anterior: América do Sul: Esquerda peruana nega apoio a Humala
Próximo Texto: Eixo do Mal: EUA preparam ataque ao Irã, diz Hersh
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.