São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGOS

Moral ocidental desaba com apenas uma foto

ROBERT FISK
DO ""INDEPENDENT"

Primeiro nossos inimigos criaram o homem-bomba. Agora temos nosso ""homem-bomba" digital próprio, a câmera. Veja como Lynndie segura a correia presa à coleira do iraquiano nu, barbado. Olhe mais para a correia de couro, para a dor no rosto do prisioneiro. Nenhum filme de sadismo poderia superar o dano provocado por essa imagem. Em 2001, os aviões derrubaram os edifícios; hoje, é Lynndie quem derruba toda a nossa moral, com apenas um puxão na correia.
O homem-bomba muçulmano grita ""Allahu Akbar", Deus é grande. E o que faz o parceiro no crime de Lynndie England? Bem, o jardim de sua casa é enfeitado com uma legenda do Livro de Oséias, sobre semear, sobre justiça. De que outro modo o islã poderia ter entrado em contato tão íntimo com a sexualidade do Velho Testamento? Poderia o cristianismo neoconservador (Lynndie também vai à igreja) ter entrado em choque com o islã de maneira mais violenta, revoltante, obscena? E quem eram os inocentes naquelas fotos vis? Os torturadores e humilhadores americanos? Ou as vítimas iraquianas?
O presidente Bush teme a reação árabe a essas fotos. Por quê? Há um ano os iraquianos vêm tentando falar aos jornalistas sobre o tratamento brutal que estão recebendo das forças de ocupação. Eles não precisam dessas fotos incriminatórias para lhes provar o que já sabem ser verdade. Mas, na história do Oriente Médio, essas fotos já ganharam o status das imagens mais fatídicas da Guerra do Vietnã: o chefe de polícia de Saigon executando seu prisioneiro vietcongue, a menina nua, queimada por napalm, a pilha de cadáveres de My Lai. No caso dos árabes, leia-se Deir Yassin e os corpos empilhados no campo de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, em 1982.
Pouco depois da ocupação de Bagdá pelas tropas americanas, em abril do ano passado, tivemos acesso ao vídeo de um espancamento brutal de presos iraquianos por parte da polícia de segurança de Saddam. Não sei ao certo em qual círculo do inferno as vítimas estavam durante os 45 minutos de sadismo constantes de uma fita que tenho. Elas são espancadas, bastões são quebrados em suas gargantas, elas são chutadas para dentro de esgotos e se encolhem como cães apavorados. E por que esses crimes de guerra foram filmados? Num primeiro momento, pensei que fosse para a diversão de Saddam ou de seu repulsivo filho Udai. Hoje, porém, percebo que os vídeos foram feitos para que os presos pudessem ser humilhados. Seu sofrimento, seus patéticos pedidos de misericórdia, seu comportamento animalesco, tudo isso seria registrado para acrescentar a camada final de degradação à sua sorte.
E hoje percebo, também, que as fotos dos iraquianos tão cruelmente tratados -tão torturados- pelos americanos foram feitas por precisamente a mesma razão. Alguém decidiu que as fotos seriam a última gota, a que faria o copo transbordar, o momento de capitulação para aqueles jovens. Façam-nos simular sexo oral. Façam-nos olhar para o pênis de seu melhor amigo. Façam uma moça admirar suas tentativas de ereção. Foram atos de perversidade realmente saddâmica.
Vamos cair na real, como dizem os americanos. Quem ensinou a Lynndie, a seu namorado e aos outros sádicos americanos da prisão de Abu Ghraib a fazer tudo aquilo? Antigamente eu perguntava quem tinha ensinado a polícia secreta síria e iraquiana a fazer aquilo. A resposta à última pergunta era simples: a polícia secreta alemã oriental. Mas e a resposta à primeira pergunta? Bem, fomos informados de que havia interrogadores ""contratados" em Abu Ghraib. Tenho razões para crer que a general Janis Karpinski, a infeliz comandante das prisões que agora será expulsa do Exército, sabia que havia ""gente de fora" interrogando seus detentos. Nunca foi permitida sua entrada na sala de interrogatório. E posso entender por que. Ela também pode.
Quem eram, então, esses misteriosos interrogadores? Se não eram agentes da CIA ou do FBI, quem eram? Vários nomes já estão rondando -até agora os jornalistas estão dizendo que não têm provas sobre nenhum deles- e, pelo que estou sabendo, vários deles possuem mais de um passaporte. Por que foram levados a Abu Ghraib? Quem os levou para lá? Quanto eles recebem? E quem os treinou? Quem lhes ensinou que é uma boa idéia fazer uma mulher apontar para um árabe forçado a se masturbar, ou que, para humilhar um iraquiano até a submissão, é boa idéia encapuzá-lo com uma calcinha?
Não estamos falando simplesmente de ""atos doentios". Estamos falando de profissionais. Bush não pedirá desculpas ao mundo árabe por essa sujeira, mas o refrão constante, insistente e interminável ouvido de oficiais americanos, repetindo que os torturadores foram apenas um grupo minúsculo de americanos não representativos, é algo que me deixa profundamente desconfiado. Lynndie e seu namorado não faziam parte de uma unidade ""fora da lei". Eles receberam ordens de fazer coisas desprezíveis. Foram encorajados. Por quem? Quando poderemos ver as fotos dessas pessoas, suas identidades, seus passaportes, suas ordens?
Sim, tudo isso faz parte de uma cultura, de uma tradição que data das Cruzadas -a tradição de que o muçulmano é sujo, lascivo, não cristão, indigno da humanidade-, o que, por sinal, é mais ou menos o que Osama bin Laden acredita sobre nós, ocidentais. E nossa guerra ilegal, imoral, falsa, agora gerou imagens que traem nosso racismo. O homem encapuzado com fios amarrados a suas mãos já virou um ícone, tão memorável quanto a do segundo avião se chocando contra o World Trade Center. Não, é claro que não matamos 3.000 iraquianos. Já matamos muito mais.


Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Internet: Polícia alemã prende criador do vírus Sasser
Próximo Texto: Frase
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.