São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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Comparar americanos a Saddam é contestável

GERALD BAKER
DO "FINANCIAL TIMES"

A equivalência moral é, há muitos anos, o mais insidioso inimigo intelectual do poderio americano. A confiança que os americanos sentem em seu país como sendo algo objetivamente benigno para toda a humanidade sempre distinguiu sua política externa daquela de todas as grandes potências que o antecederam.
Durante mais de meio século de supremacia mundial americana, essa reivindicação vem sendo solapada -às vezes falsamente, outras vezes com razão- por atos hediondos que, à primeira vista, parecem ser imorais. Alguns desses atos, como Hiroshima ou como o apoio dado a ditadores vis durante a Guerra Fria, foram produtos de avaliações morais conscientes e calculadas segundo as quais o fim desejável justificava o meio abominável. Outros, como My Lai, foram lapsos indefensáveis de comportamento humano individual que macularam a honra de todo um país.
Desde que invadiram o Iraque, um ano atrás, os EUA vêm enfrentando o sofisma sedutor da equivalência moral. Na Alemanha, George W. Bush e seu aliado Tony Blair são rotineiramente tachados por políticos e comentaristas de criminosos de guerra, por não terem obtido a aprovação da ONU antes de empreenderem sua ação militar, e essa crítica é proferida dentro de uma comparação implícita com o passado da Alemanha. O fato de não terem sido encontradas armas de destruição em massa é visto como fruto de uma mentira deslavada dos EUA e do Reino Unido, comparável às alegações soviéticas de que sua agressão descarada foi lançada para apoiar os assoberbados húngaros ou afegãos. A morte de alguns milhares de civis no Iraque vem sendo citada pelos críticos dos EUA, através da operação de algum cálculo moral inexato, como ""prova" de que, para os iraquianos, Bush é moralmente indistinguível de Saddam Hussein.
A esse misto tóxico agora vem somar-se o simbolismo grotesco de Abu Ghraib. Mesmo na prosa seca do oficialês do Pentágono, as acusações do relatório sobre o sistema de prisões administrado pelo Exército são chocantes. Iraquianos foram sujeitos a abuso sexual, tortura e morte.
E, o que é muito mais contundente ainda, todos nós já vimos as imagens bizarras e dantescas de corpos humanos nus empilhados como carne de cavalo diante de soldados americanos com as bocas abertas em sorrisos imbecis, soldados esses cuja depravação é tão difícil de compreender quanto é abominável. Ou, então, a imagem dolorosa do prisioneiro encapuzado, atados a fios elétricos, como um passarinho confuso encurralado por um predador.
Mas a afirmação, que agora virou comum no mundo árabe e até mesmo em boa parte da Europa, de que essas imagens constituem a prova final de que a América é a equivalente moral ao Iraque de Saddam, precisa ser gentilmente contestada. Saddam nunca foi prestativo a ponto de prover ao público fotos daquilo que seus homens faziam em Abu Ghraib.
E há um tom de indignação chocada nessas revelações, especialmente nos EUA, que me parece um pouco ingênuo. Presume-se que a tortura não seja algo raro no Iraque e no Afeganistão. A guerra é um trabalho sujo que diariamente coloca homens e mulheres diante de escolhas terríveis que a maioria de nós não precisa fazer nenhuma vez na vida.
No filme ""Questão de Honra" (1992), o coronel dos marines Nathan Jessup (Jack Nicholson), acusado de maltratar um soldado, se explica: ""Minha existência, embora seja grotesca e incompreensível a vocês, salva vidas. Vocês não querem a verdade. Porque, lá no fundo, em lugares que não são assunto em festa, vocês querem que eu esteja naquela parede, precisam de mim naquela parede".
Entretanto não basta simplesmente afirmar a diferença moral entre a América de Bush e o Iraque de Saddam. Estamos diante de um teste grave do caráter da América. Será preciso empreender uma ação. Todos os responsáveis por esses crimes precisam ser tratados com a força plena da Justiça militar, como aconteceu com o fictício coronel Jessup -até o mais alto escalão do comando militar. Se só os nanicos sofrerem medidas disciplinares sérias, isso não será o suficiente para lavar essa mancha. É porque a América não é Saddam que ela precisa mostrar que sabe lidar com quem infringe seu código ético.
Não tenho dúvida de que, no final, os EUA serão aprovados nesse teste. Mas o que só pode estar em dúvida muito mais séria neste momento é se o país possui a habilidade de liderança e a competência pura e simples necessárias para dar garantias aos iraquianos e aos próprios americanos.
A marca do tratamento dado pelo governo Bush à ocupação do Iraque não tem sido a crueldade desumana, mas a incompetência abissal. Desde o momento em que as forças americanas entraram em Bagdá, um ano atrás, a ocupação vem se caracterizando por arrogância desmedida, julgamentos equivocados, surdez política, parcimônia, inconsistência e cálculos equivocados. Sua busca por um acordo político tem sido tortuosa e, inacreditavelmente, mesmo nesta fase adiantada, improdutiva. A maneira como vem cuidando da segurança, desde a pilhagem de Bagdá até o impasse em Fallujah, no mês passado, vem sendo caótica e indecisa. Apesar da retórica, a ocupação passa a impressão de que lhe falta disposição ou conhecimentos.
Como disse Walter Russell Meade, estudioso da política externa dotado de visão eternamente otimista, ""a América começou no Iraque dispondo de uma larga margem de erro. Desde então, não parou de consumir essa margem". Em última análise, o que vai solapar a liderança dos EUA não é a falta de confiança em suas boas intenções, mas a descrença quanto a sua capacidade de colocá-las em prática.


Tradução de Clara Allain


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