São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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O cartunista mais polêmico da contracultura americana diz à Folha que Bush quer dominar o mundo e que ninguém gosta de seu governo

O mundo segundo CRUMB

LUCIANA COELHO
DA REDAÇÃO

A voz calma e as frases bem articuladas mal fazem transparecer que do outro lado da linha está o responsável pelo traço sujo e pelas formas grotescas (muitas delas, efeito de drogas alucinógenas) que definem um dos trabalhos mais contundentes da cultura underground americana.
Mas alguns minutos de conversa com o cartunista Robert Crumb são suficientes para perceber que toda a pulsão sexual, a ojeriza à sociedade consumista e as doses cavalares de cinismo e misantropia que permeiam sua obra seguem ali, borbulhando.
Aos 60 anos, 13 deles na França, Crumb parece ainda não ter se encontrado ("não me sinto bem em nenhum lugar"), fala com desprezo profundo sobre a cultura americana e, sobretudo, sente muito medo do rumo político que os EUA tomaram.
Nascido em 1943 em uma família de cinco irmãos da Filadélfia, Crumb começou a desenhar muito cedo, muito pela insistência do irmão mais velho, Charles. O hobby se tornou ganha-pão em 1962, quando se tornou ilustrador da American Greetings. Logo viriam os quadrinhos e uma profusão de personagens que marcariam a chamada contracultura americana: Fritz the Cat, Mr. Natural, Angelfood, Devil Girl...
A obra, vasta, ganhou público fiel, a admiração da crítica e compilações que a alçaram ao status daquilo que Crumb mais despreza -o de produto cultural de sucesso. De sua casa no sul da França (ele se nega a revelar a cidade), o cartunista falou à Folha por telefone. Tratou de política, drogas, sucesso e, claro, mulheres.

 

Folha - Como está a vida na França? Já faz mais de dez anos que o sr. se mudou, não?
Robert Crumb -
Treze anos. Nós viemos para cá em abril de 1991. Minha mulher [Aline Kominsky] é que estava mais animada, ela queria tirar nossa filha dos EUA.

Folha - Por quê?
Crumb -
Porque ela não estava gostando do efeito da cultura americana sobre a nossa filha.

Folha - O sr. vê o efeito da mudança sobre Sophie?
Crumb -
Com certeza. Ela é uma pessoa que não tem uma identidade nacional específica, nem totalmente francesa nem americana. Ela tem as duas coisas misturadas, o que a torna outra coisa.

Folha - Hoje é uma vantagem não ter essa identidade americana?
Crumb -
Sim. Eu sempre fui uma pessoa alienada quanto a isso. Minha mulher também se sente mais confortável na França.

Folha - E o sr.?
Crumb -
Eu não me sinto bem em nenhum lugar [risos]. Mas a Sophie esteve recentemente nos EUA e foi atrás de alguns amigos de infância. Muitas das meninas tiveram problemas sérios com drogas, algumas passaram até por programas de desintoxicação.

Folha - O sr. não parece ser a pessoa mais adequada para condenar o uso de drogas...
Crumb -
[Risos] É verdade... Mas é que, aqui na França, ela usa haxixe, mas lá são drogas pesadas, que aqui são mais difíceis de conseguir, como cocaína, crack. Essa cultura não é tão disseminada na França. Eu usei algumas drogas quando era mais novo, usei LSD, fumei maconha, essas coisas. Mas cocaína, anfetamina, crack... Isso faz tanto mal...

Folha - O sr. parece realmente feliz por ter criado sua filha longe dos EUA. Além da questão das drogas, há mais razões para isso?
Crumb -
Nós moramos em uma cidade muito pequena, e na França ainda há essa tradição familiar. Nos EUA, as pessoas vivem cada uma por si. Os filhos são mais largados do que aqui. É claro que isso também proporciona resultados interessantes, porque você acaba tendo de se virar, criar. Os EUA são um lugar muito interessante em termos criativos, porque tudo é muito maluco lá. Há muito mais adolescentes interessados em desenvolver coisas criativas do que na França, por exemplo.

Folha - E as mulheres francesas?
Crumb -
Não é o tipo de mulher de que eu gosto, elas são muito pequenas, não têm coxa nem bunda.

Folha - O sr. sente falta disso?
Crumb -
Muita! Nunca imaginei, mas é do que eu mais sinto falta aqui: das mulheres americanas.

Folha - Não é inimaginável...
Crumb -
Bom, eu tenho de ir para Amsterdã se quiser ver o tipo de mulher do qual gosto. Ah, já me disseram para ir ao Brasil. Dizem que a bunda da mulher brasileira é a mais incrível no mundo. Mas, voltando, há uma diferença básica entre a cultura francesa e a americana: a França não é tão obcecada por dinheiro. Eles sabem que há outras coisas legais, nem sempre compráveis.

Folha - Agora que Sophie tem 22 anos, o sr. pensa em voltar?
Crumb -
Não, não mesmo.

Folha - Por causa do governo?
Crumb -
Meus amigos contam que só está piorando, que há cada vez mais fascismo...

Folha - O sr. concorda?
Crumb -
Bom, ninguém gosta do governo americano. Ninguém.

Folha - Essa onda de antiamericanismo, para alguém que não só está fora do país como era um "outsider" dentro dele, era previsível?
Crumb -
Não me surpreendeu. Dava para ver que os EUA estavam ficando cada vez mais isolados e direitistas desde os anos [de Ronald] Reagan [1981-1989]. O [Bill] Clinton [1993-2001] tentou pôr freio nisso, mas não completamente. Ele teve de passar boa parte de seus mandatos se defendendo de acusações de andar por aí com mulheres. Aí entrou o Bush e as coisas ficaram fora de controle. As ambições deles [Bush e seus assessores] são terríveis. É a dominação mundial.

Folha - O que o sr. acha do discurso de Bush, pontuado por referências ao Bem e ao Mal?
Crumb -
Ele está apelando para o mínimo denominador comum, está apelando para o eleitor ignorante, pois já desistiu do eleitor inteligente. Está atrás dos fundamentalistas cristãos. A coalizão cristã representa uns 15 milhões de votos. Mas há esperança. Espero que ele perca, porque teremos problemas se ele não perder.

Folha - O sr. acha que Bush vence?
Crumb -
Ninguém pode dizer. Temos um jornal de língua inglesa que circula aqui, o International Herald Tribune, onde uns caras pagaram um anúncio de página inteira pedindo o impeachment de Bush e Cheney, dizendo que o Congresso deveria usar de meios legais para expulsá-los.

Folha - Não seria fácil...
Crumb -
Nada fácil, imagine, o Congresso enfrentar o Executivo.

Folha - Eu soube que Mr. Natural [o personagem mais famoso de Crumb] passou um tempo no Afeganistão... Ele tem algum conselho para o presidente Bush?
Crumb -
[Risos] "Sr. Bush, vá se sentar numa caverna numa montanha e passe uns dez anos sozinho pensando no que você fez."

Folha - Dez anos são suficientes?
Crumb -
O Bush nem é o maior problema, pois ele é basicamente um fantoche. O [vice-presidente, Dick] Cheney é um cara realmente mau, um personagem sinistro e diabólico. E por trás de tudo isso há uma série de "think tanks", essas instituições com esses caras que ficam pensando em políticas, esquemas, estratégias de dominação mundial... Eu li um livro incrível, chamado "The Grand Chessboard" [o grande tabuleiro de xadrez], desse cara, [Zbigniew] Brzezinski, que esteve no gabinete do Reagan, e expõe a estratégia de dominação na qual essas instituições trabalham. Não é segredo, mas é deprimente ler sobre isso. O autor foca a Eurásia, diz que é a chave para a dominação mundial. Uma vez que ocorra [a dominação] na Ásia Central - Afeganistão, Uzbequistão, Cazaquistão, esses países que têm muitos recursos naturais... Os EUA querem ter certeza de que controlam essa região. É essa a estratégia.

Folha - A Guerra do Iraque é um passo para isso?
Crumb -
Com certeza faz parte dessa estratégia. Há linhas de comércio muito importantes lá, comércio de petróleo pelo Iraque, pelo Irã, para a Rússia e a Ásia Central. Muita gente acha que nós precisamos do petróleo, que os estoques de petróleo estão acabando e nós precisamos dominar isso. Mas não é isso. É a dominação econômica que eles querem. É uma estratégia cruel e errada, penso eu, ao invés de trabalhar para a cooperação mundial. Mas gente como o presidente nem deve achar que isso é possível, ele acha que os asiáticos e os russos nem sabem fazer negócios, que se os EUA não dominarem haverá um caos mundial. Eles acham que estão tirando o mundo do caos.

Folha - O sr. disse uma vez que tomou aversão pela cultura americana. Ainda se sente dessa forma?
Crumb -
Mais do que nunca. A cultura americana está pior do que nunca, terrível. Tudo é tão vendido, tão comercial... É extremamente raro vermos algo realmente autêntico. Para onde quer que você olhe, está tudo esmagado por comerciais...

Folha - O que o sr. achou do modo como o retrataram no filme "Anti-herói Americano"?
Crumb -
Vi o filme em Nova York, com minha mulher. Ela disse: "Se na vida real você fosse como aquele cara do filme, eu pediria o divórcio".

Folha - Mas o sr. gostou?
Crumb -
É um filme bem feito. Achei a representação de Harvey Pekar e da mulher dele muito boa.

Folha - O trabalho de Pekar não é muito divulgado fora dos EUA.
Crumb -
Nem nos EUA. Mas uma vez que um filme chegue à mídia nacional, tudo fica muito louco... Vi isso acontecer quando fizeram o documentário sobre a minha vida. Fiquei muito mais conhecido, as coisas mudaram para um nível totalmente diferente. De repente, você é um astro de cinema.

Folha - Que tal a sensação?
Crumb -
É incrível, muito estranha. Você entra em um restaurante e as pessoas te reconhecem, mas na verdade elas estão reconhecendo a imagem que viram na tela. Elas acham que sabem tudo sobre você. Essa coisa estúpida e vazia de ser uma celebridade da mídia é muito idiota. Não tem nada a ver com qualquer mérito pessoal que você possa ter. É só o fato de você estar na tela, mesmo sendo um completo babaca.

Folha - Hoje essa indústria de celebridades anda produzindo mais do que nunca. Qual a razão?
Crumb -
É assustador. Você acaba sendo obrigado a desenvolver uma defesa crítica para não se tornar uma vítima. É uma coisa desgraçadamente poderosa, que manipula a nossa consciência de formas que nem sequer percebemos. É um fenômeno que existe há poucas gerações. E está piorando.


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