São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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ÁFRICA

Moradores negros de Darfur (oeste do país) relatam invasão de vilas por milicianos árabes, apoiados pelo governo

Conflito no Sudão causa 1 milhão de refugiados, diz ONU

Ben Parker - 16.abr.2004/Unicef/Associated Press
Mulheres e crianças em acampamento de Mornay (oeste do Sudão), onde vivem 60 mil refugiados


MARC LACEY
DO ""NEW YORK TIMES", EM NYALA (SUDÃO)

Hawa Muhammad, 15, perdeu quase tudo com a chegada dos homens armados a cavalo. Eles levaram as mulas e o pequeno rebanho de cabras e ovelhas da família. Também levaram seu pai e sua mãe. ""Os cavaleiros mataram meus pais", disse a moça, referindo-se aos janjaweed, combatentes árabes do oeste do Sudão que, segundo um enviado da ONU, estão impondo um "reinado do terror" em Darfur, na fronteira com o Chade. ""Em seguida, vieram os aviões", continua Hawa.
Sua história é apenas uma entre tantas outras relatadas pelos cerca de 1 milhão de refugiados de um conflito étnico que, segundo agências humanitárias, é um dos mais graves em curso no mundo.
"Primeiro, há um reinado do terror na área. Segundo, há uma política de terra arrasada. Terceiro, estão ocorrendo repetidos crimes de guerra e contra a humanidade e, quarto, tudo isso está acontecendo diante dos nossos olhos", disse Bertrand Ramcharan, comissário da ONU para os direitos humanos, ao Conselho de Segurança, anteontem.
Hoje é por Hawa que suas seis irmãs menores procuram quando têm fome. Elas deixaram seu povoado às pressas e, juntamente com milhares de outras pessoas, vieram para o campo de refugiados de Kalma, próximo a Nyala.
Durante boa parte do ano passado, o governo em Cartum (capital sudanesa) impediu o acesso de pessoas de fora a Darfur. A ONU só obteve permissão após intensa pressão internacional.
O relato de Hawa é igual aos que se ouvem em um campo de refugiados após outro em Darfur, assim como em acampamentos no deserto do leste do Chade, para onde, segundo estima a ONU, já fugiram outros 100 mil.
Muitos foram expulsos de suas vilas pelos janjaweed, milhares de milicianos uniformizados, de origem árabe, que atuam na região.
Soldados sudaneses, apoiados por jatos militares, também empreendem uma campanha que tem resultado na expulsão ou fuga dos moradores africanos.
Cartum nega ter qualquer relação com os janjaweed, mas os refugiados dizem que os vínculos são fortes. Organizações humanitárias e especialistas confirmam.
Rebeldes do sul do Sudão tentam há 20 anos derrubar o governo no norte do país, dominado por árabes. Dois milhões de pessoas já morreram nesse conflito.
Desde o início de 2003, dois grupos rebeldes em Darfur, o Exército de Libertação do Sudão e o Movimento de Justiça e Igualdade, pegaram em armas, queixando-se de que a população local, especialmente a negra, estaria sendo marginalizada.
As tensões acenderam uma rivalidade de muitos anos entre agricultores africanos negros e nômades e pastores árabes. E foram agravadas pela estiagem no norte de Darfur e o avanço do deserto rumo ao sul. As disputas são "resolvidas" com armas contrabandeadas de países vizinhos.
Os rebeldes tiveram algumas vitórias iniciais, e o governo reagiu com fúria, inclusive com o uso de helicópteros de guerra e velhos aviões Antonov carregados de bombas. Grupos de defesa dos direitos humanos alegam que os janjaweed estão sendo usados por Cartum para promover uma ""limpeza étnica" em Darfur. Em seu relato ao Conselho de Segurança, Ramcharan evitou o termo, mas exigiu ação imediata para conter os milicianos árabes.
Segundo o embaixador sudanês na ONU, Elfatih Mohamed Ahmed Erwa, os civis não estariam sendo deliberadamente alvejados, mas sofreriam dos "efeitos colaterais" da guerra contra os rebeldes. Ele acusa a ONU de exagerar o número de refugiados.
Os janjaweed se deslocam a camelo e a cavalo, invadem povoados em bandos grandes e atiram no que vêem pela frente. Enquanto eles saqueiam e queimam as aldeias, os moradores fogem.
Um povoado vazio é um lugar estranho, lúgubre. Não há choro de bebês, nem balido de cabras, não há mulheres socando grãos. Só se ouve o vento que fustiga as choupanas vazias, queimadas.
Onze vilas fantasmas se alinham ao longo da estrada principal perto de Nyala. Em cada uma delas, fica claro que a vida foi interrompida bruscamente. Camas estão desarrumadas; panelas, viradas.
Fátima Ishag Suleiman, 25, estava dormindo quando os janjaweed chegaram. Dois homens invadiram sua casa, bateram nela, depois a estupraram. ""Eu gritei, e eles fugiram", ela conta em árabe.
Hoje ela vive debaixo de uma árvore em uma escola secundária em Kas (sul de Darfur).
Adam Hassan, um homem de rosto cansado e vestes gastas, conta que, primeiro, foram cavaleiros árabes que invadiram sua vila, perto de Kaliek. Em seguida, chegaram os soldados. Seus dois filhos, de sete e dez anos, foram mortos.
Como muitos outros, Hassan é agricultor e quer desesperadamente voltar às suas terras. Ele depende das chuvas fortes que chegam em junho para infundir vida à terra ressecada. Sustenta sua família, agora ceifada, com o sorgo e as nozes que cultiva. Mas ele e centenas de milhares de outros agricultores provavelmente vão perder a estação da semeadura deste ano. As agências humanitárias já esperam um surto de fome generalizada. ""Talvez eu seja obrigado a ficar aqui para sempre", diz Hassan, sombrio. ""Há janjaweed demais aí fora."

Colaborou a Redação

Tradução de Clara Allain


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