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Ajuda externa é essencial a Mianmar, diz brasileiro
Para ex-relator da ONU, país "não tem competência" para ajudar vítimas do ciclone
Paulo Sérgio Pinheiro, que deixou posto de relator especial no dia 30, diz que junta militar veta entrada dos EUA "por paranóia"
JOSÉ AUGUSTO AMORIM
DA REDAÇÃO
Vítimas do ciclone Nargis,
que atingiu Mianmar na sexta-feira e pode ter causado 100 mil
mortes, os birmaneses reclamam da atuação dos militares,
que controlam o país desde
1692. Dizem que um cartaz
contra a ditadura era suficiente
para atrair dezenas de soldados
em minutos, mas agora, com
ruas tomadas por árvores caídas e quase sem água potável
para beber, o Exército nada faz.
"A população está abandonada", atesta Paulo Sérgio Pinheiro, carioca que foi relator especial da ONU para Mianmar de
2000 até o dia 30 de abril,
quando passou o bastão para o
argentino Tomas Ojea.
"Relator especial" é o título
que a organização dá a pessoas
que trabalham em seu nome
para investigar, monitorar e recomendar soluções para problemas humanos em países como, além de Mianmar, Sudão.
Para piorar o cenário, Mianmar está retardando a emissão
de vistos de entrada para equipes de ajuda humanitária. O
país é tão fechado que o site do
jornal oficial não é atualizado
desde o dia 1º, véspera de o ciclone atingir o país, um dos
mais pobres da Ásia.
Leia abaixo trechos da entrevista que concedeu à Folha,
por telefone, da Costa Rica, na
quarta-feira, em que fala também sobre o referendo sobre a
nova Constituição, marcado
para sábado e adiado em algumas partes atingidas pelo Nargis. Ontem, o secretário-geral
da ONU, Ban Ki-moon, pediu
que a junta militar adie o referendo, pois seria "prudente"
focar na ajuda às vítimas.
FOLHA - O referendo sobre a Constituição foi adiado em 40 das 45 cidades atingidas e mantido no resto
do país. Como o sr. vê esse isso?
PAULO SÉRGIO PINHEIRO - Não muda nada, pois sabemos que vai
ganhar o "sim" para aprovar a
Constituição, o que é uma verdadeira palhaçada. Como haver
um referendo e as pessoas serem presas por fazer campanha
pelo "não"? Você não pode fazer campanha pelo "não". Uma
reunião de mais de cinco pessoas é ilegal. Isso é uma piada.
FOLHA - O ciclone de alguma forma vai afetar essa votação?
PINHEIRO - Em nada. Não há nenhuma garantia de que haja
transparência. A única maneira
seria ter observadores internacionais, mas eles recusaram. A
convenção que escreveu os
princípios da Constituição foi
escolhida pelo governo, sem
nenhuma participação [civil].
Eles me disseram pessoalmente que não iam fazer essa concessão. Eu acho que, como está,
é um processo de consolidação
autoritária. No final, vai ser
mais difícil obter alguma mudança desse referendo.
FOLHA - Votar em duas fases dá
margem para os militares manipularem os resultados?
PINHEIRO - É um governo que
mostra grande insensibilidade,
não consegue nem adiar a data
de um referendo. Mesmo antes
do ciclone, vimos cenas que
mostram pobreza, miséria.
FOLHA - O que o sr. acha de os militares não autorizarem a entrada de
ajuda humanitária?
PINHEIRO - Isso faz parte da paranóia. Um governo que muda
sua capital para o meio da floresta com medo de ser invadido
pelas grandes potências... Eles
também não têm grande consideração pela população. Desembarcar navios, helicópteros, como os EUA oferecem,
eles [militares] estão morrendo
de pânico que esses helicópteros ampliem sua tarefa. O governo não tem nenhuma competência para atender a população sinistrada sem o apoio da
comunidade internacional.
FOLHA - O governo de Mianmar
tem helicópteros, necessários para
chegar à área mais atingida?
PINHEIRO - Tem, eu já viajei, são
helicópteros soviéticos. Não sei
nem se chegam a dez. Eu viajei
em dois, mas eram peças de
museu. É um Exército, em termos de infantaria, bem aparelhado, mas, em termos de assistência a emergências, não tem
nenhuma condição, não tem
treinamento. A população está
realmente abandonada.
FOLHA - No final das contas, os militares não vão conceder visto para
os americanos?
PINHEIRO - Eu acho que pode
ser que eles aceitem a Europa, a
Cruz Vermelha, mas aceitar helicópteros americanos acho, lamentavelmente para a população, pouco provável.
FOLHA - O chanceler francês, Bernard Kouchner, disse, na quarta-feira, que é o caso de a ONU usar o
"princípio de proteção" e entrar em
Mianmar mesmo sem autorização.
PINHEIRO - É uma coisa muito
delicada, acho temerário invocar o direito nessa situação.
Não é assim, em cima da hora. É
muito problemático você passar de um país que tem um regime de sanções, como os EUA
têm há quase 20 anos, para esperar que o outro aceite sua colaboração de braços abertos.
FOLHA - O direito de intervir pode
ser aplicado em que situações?
PINHEIRO - Até hoje a ONU não
chegou a um texto que possa
conviver com democracia. Não
há nenhum tratado definido. É
uma coisa muito delicada e
realmente problemática, especialmente para o Sul. Não há
emergências no hemisfério
Norte que justifiquem uma intervenção. É um direito muito
politizado e seletivo.
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