São Paulo, sexta-feira, 09 de maio de 2008

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Ajuda externa é essencial a Mianmar, diz brasileiro

Para ex-relator da ONU, país "não tem competência" para ajudar vítimas do ciclone

Paulo Sérgio Pinheiro, que deixou posto de relator especial no dia 30, diz que junta militar veta entrada dos EUA "por paranóia"

JOSÉ AUGUSTO AMORIM
DA REDAÇÃO

Vítimas do ciclone Nargis, que atingiu Mianmar na sexta-feira e pode ter causado 100 mil mortes, os birmaneses reclamam da atuação dos militares, que controlam o país desde 1692. Dizem que um cartaz contra a ditadura era suficiente para atrair dezenas de soldados em minutos, mas agora, com ruas tomadas por árvores caídas e quase sem água potável para beber, o Exército nada faz.
"A população está abandonada", atesta Paulo Sérgio Pinheiro, carioca que foi relator especial da ONU para Mianmar de 2000 até o dia 30 de abril, quando passou o bastão para o argentino Tomas Ojea.
"Relator especial" é o título que a organização dá a pessoas que trabalham em seu nome para investigar, monitorar e recomendar soluções para problemas humanos em países como, além de Mianmar, Sudão.
Para piorar o cenário, Mianmar está retardando a emissão de vistos de entrada para equipes de ajuda humanitária. O país é tão fechado que o site do jornal oficial não é atualizado desde o dia 1º, véspera de o ciclone atingir o país, um dos mais pobres da Ásia.
Leia abaixo trechos da entrevista que concedeu à Folha, por telefone, da Costa Rica, na quarta-feira, em que fala também sobre o referendo sobre a nova Constituição, marcado para sábado e adiado em algumas partes atingidas pelo Nargis. Ontem, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, pediu que a junta militar adie o referendo, pois seria "prudente" focar na ajuda às vítimas.

 

FOLHA - O referendo sobre a Constituição foi adiado em 40 das 45 cidades atingidas e mantido no resto do país. Como o sr. vê esse isso?
PAULO SÉRGIO PINHEIRO -
Não muda nada, pois sabemos que vai ganhar o "sim" para aprovar a Constituição, o que é uma verdadeira palhaçada. Como haver um referendo e as pessoas serem presas por fazer campanha pelo "não"? Você não pode fazer campanha pelo "não". Uma reunião de mais de cinco pessoas é ilegal. Isso é uma piada.

FOLHA - O ciclone de alguma forma vai afetar essa votação?
PINHEIRO -
Em nada. Não há nenhuma garantia de que haja transparência. A única maneira seria ter observadores internacionais, mas eles recusaram. A convenção que escreveu os princípios da Constituição foi escolhida pelo governo, sem nenhuma participação [civil]. Eles me disseram pessoalmente que não iam fazer essa concessão. Eu acho que, como está, é um processo de consolidação autoritária. No final, vai ser mais difícil obter alguma mudança desse referendo.

FOLHA - Votar em duas fases dá margem para os militares manipularem os resultados?
PINHEIRO -
É um governo que mostra grande insensibilidade, não consegue nem adiar a data de um referendo. Mesmo antes do ciclone, vimos cenas que mostram pobreza, miséria.

FOLHA - O que o sr. acha de os militares não autorizarem a entrada de ajuda humanitária?
PINHEIRO -
Isso faz parte da paranóia. Um governo que muda sua capital para o meio da floresta com medo de ser invadido pelas grandes potências... Eles também não têm grande consideração pela população. Desembarcar navios, helicópteros, como os EUA oferecem, eles [militares] estão morrendo de pânico que esses helicópteros ampliem sua tarefa. O governo não tem nenhuma competência para atender a população sinistrada sem o apoio da comunidade internacional.

FOLHA - O governo de Mianmar tem helicópteros, necessários para chegar à área mais atingida?
PINHEIRO -
Tem, eu já viajei, são helicópteros soviéticos. Não sei nem se chegam a dez. Eu viajei em dois, mas eram peças de museu. É um Exército, em termos de infantaria, bem aparelhado, mas, em termos de assistência a emergências, não tem nenhuma condição, não tem treinamento. A população está realmente abandonada.

FOLHA - No final das contas, os militares não vão conceder visto para os americanos?
PINHEIRO -
Eu acho que pode ser que eles aceitem a Europa, a Cruz Vermelha, mas aceitar helicópteros americanos acho, lamentavelmente para a população, pouco provável.

FOLHA - O chanceler francês, Bernard Kouchner, disse, na quarta-feira, que é o caso de a ONU usar o "princípio de proteção" e entrar em Mianmar mesmo sem autorização.
PINHEIRO -
É uma coisa muito delicada, acho temerário invocar o direito nessa situação. Não é assim, em cima da hora. É muito problemático você passar de um país que tem um regime de sanções, como os EUA têm há quase 20 anos, para esperar que o outro aceite sua colaboração de braços abertos.

FOLHA - O direito de intervir pode ser aplicado em que situações?
PINHEIRO -
Até hoje a ONU não chegou a um texto que possa conviver com democracia. Não há nenhum tratado definido. É uma coisa muito delicada e realmente problemática, especialmente para o Sul. Não há emergências no hemisfério Norte que justifiquem uma intervenção. É um direito muito politizado e seletivo.


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