São Paulo, domingo, 9 de maio de 1999

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE
Conflito mostra ineficácia de organizações internacionais

RICARDO SEITENFUS
especial para a Folha

²

"Em nenhum país, o governo tem o direito de se esconder atrás da soberania nacional para violar os direitos do homem ou as liberdades fundamentais dos habitantes deste país." Kofi Annan, secretário-geral da ONU

A guerra de Kosovo é o último castigo do homem do fim do século. Mergulhado em crises e dúvidas, faltou-lhe, entre outras, a resposta para o dilema fundamental das relações entre os dois mundos contemporâneos, separados pela radical geografia da pobreza.
Tanto a testemunha ocular de brutais violações dos direitos fundamentais, como o mais distante e rico cidadão do Hemisfério Norte, perguntam-se hoje: é preciso intervir militarmente num Estado cuja lógica dominante o leva a assassinar seus próprios nacionais ou é preciso que cada país tenha direito à sua própria guerra?
Se a omissão implica a aceitação da guerra do outro, a ação impõe que uma nova guerra sobreponha-se à original.
Em qualquer uma das hipóteses, é compreensível a indignação dos pacifistas, dos democratas e dos homens de boa vontade diante da via crucis de horrores que insiste em permanecer cravada na paisagem do mundo. A questão é: ou se aprecia o quadro, ou se faz parte dele.
Mesmo que se imagine um cenário de intervenção onde o interventor nada tem a ganhar e é movido apenas pela solidariedade, a decisão de intervir exige o alinhamento com uma das partes em conflito. Reforça, ainda, o predomínio da vontade do mais forte sobre qualquer fenômeno que se oponha à hegemonia do Ocidente.
No caso de Kosovo, o uso da força tem sido apontado como uma falha da ONU, que deveria organizar os Estados a partir de critérios políticos por meio da diplomacia, e tem como missão impedir os conflitos, garantindo, acima de tudo, a proteção à vida humana como valor fundamental. Muitos dizem que o centro do poder mundial transfere-se da ONU para a Otan.


Muitos dizem que o centro do poder mundial passou da ONU para a Otan

Ora, com exceção do período Gorbatchov (1986-1992), o sistema de solução de controvérsias da ONU nunca foi eficaz. Ocorreram, nos últimos 50 anos, mais de 200 guerras que provocaram 25 milhões de mortes e outro tanto de refugiados. A ausência de uma guerra mundial não deve ser confundida com a paz.
Atualmente, ocorrem no mundo pobre mais de três dezenas de conflitos sangrentos, distantes da mídia internacional, sem que a ONU demonstre capacidade para intervir.
Para os países ricos, embora a Carta de San Francisco diga o contrário, o Conselho de Segurança é apenas uma das alternativas para discutir a solução dos conflitos.
É evidente que os Estados Unidos prefeririam intervir ungidos por um mandato da ONU para a utilização da força. Mas Washington não aceita a possibilidade de paralisar sua ação externa diante do veto de um dos membros permanentes do Conselho de Segurança.
No recente caso da Bósnia e atualmente em Kosovo, a política de mãos livres dos Estados Unidos recebeu o aval dos outros 18 membros da Otan e o apoio, aberto ou velado, de parte significativa da comunidade internacional.
Há, de fato, dois falsos cortes nesta tomada de posições. O primeiro deles entre Norte e Sul, pois grande parte dos governantes do Sul imaginam-se vítimas potenciais destas crises e desejam violar os direitos humanos em paz. O segundo, entre a direita e a esquerda, faz com que uma suposta esquerda afaste-se do humanismo e da solidariedade, aliando-se aos nacionalistas para defender o princípio da soberania do Estado.


A intervenção irresponsável da Otan só serve para confundir os homens

Que a ação da Otan é ilegal, tendo como parâmetro a Carta de San Francisco, não há dúvidas. Ocorre que a Carta é de todo insuficiente como parâmetro.
O direito internacional, que já foi chamado direito das gentes, deve obedecer a princípios bem mais amplos do que o direito positivado. Mas a intervenção da Otan, incompetente, ineficaz e irresponsável, tanto nos objetivos como nos resultados, só serve para confundir os homens.
Era preciso agir em Kosovo para que um novo genocídio fosse evitado, por meio de tropas de paz, no solo, que protegessem os civis das ações de extermínio, sem contudo interferir na guerrilha independentista em curso.
Quanto à última, era preciso deixar à diplomacia a negociação de acordos que devolvessem a Kosovo sua autonomia perdida. Até que Milosevic fosse minado pela própria oposição sérvia e demovido de sua anacrônica ira racial, o coletivo internacional lá estaria para mostrar que a vida humana é o único valor, e o humanismo a única ideologia que devem justificar o uso da força.
Feito o estrago, quem punirá a Otan pelos seus erros ? Diante da inépcia das instituições universais hoje existentes, o uso da força acaba por escapar às instituições, e com isto a critérios e a controles.
Urge a criação de um Conselho Permanente de Segurança da Humanidade (CPSH), com representação regional e cultural, que tome decisões por maioria qualificada e sem poder de veto. Os princípios do direito das gentes não devem ser observados somente nos casos em que contemplam o interesse dos mais fortes.
Os interventores devem restringir seus objetivos a fazer cessar o desrespeito aos direitos humanos fundamentais. A ação do coletivo internacional só seria justificável quando compatível com o objetivo buscado.
Enquanto isso, o homem de bem odeia tanto Clinton quanto Milosevic, chora pela miséria, em todos os sentidos, dos protegidos que se transformaram em refugiados. O século termina e ainda nos matamos em massa, ou de fome, ou pela guerra, seja a violência urbana ou o ataque militar. Castigo global e inescapável que dilacera o sagrado império do indivíduo.
²
Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 51, é doutor em relações internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais (Genebra), professor titular da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e Pesquisador do CNPq. Autor, com Deisy Ventura, de Introdução ao Direito Internacional Público (Livraria do Advogado Editora, 1999), entre outros livros.




Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.