São Paulo, quinta-feira, 09 de setembro de 2004

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Relatos contradizem parte da versão oficial do massacre

ANDREW OSBORN
DO "INDEPENDENT", EM BESLAN

No episódio do massacre da escola de Beslan, nem sempre a versão oficial dos fatos encontra correspondência nas investigações e nos relatos de testemunhas.
 

A versão oficial - Os terroristas eram um grupo de mercenários de origens diversas, alguns árabes e outros da Tchetchênia e da Inguchétia. Várias mulheres-bomba, ou "shakidki", conhecidas como "viúvas negras", também teriam estado na escola. A ação também teria contado com combatentes do Cazaquistão e com "eslavos".
O presidente russo, Vladimir Putin, declarou que os combatentes tinham vínculos com a Al Qaeda e o terrorismo internacional. Num primeiro momento, as autoridades insistiram que entre 17 e 20 pessoas tomaram parte na ação.

Os fatos - Os seqüestradores eram em número muito maior -teriam sido pelo menos 32. Os reféns disseram não ter visto árabes entre os terroristas e que estes, o tempo todo, falaram entre si apenas em russo, se bem que com sotaque forte. Mas um dos seqüestradores capturados, aparentando ter sido submetido a "interrogatório intenso", falou que havia árabes, uzbeques e pessoas de outras nacionalidades.
Os reféns também afirmam que pelo menos um dos terroristas era "um homem negro e alto, de físico forte", e as autoridades dizem que outro era de Qatar.

A versão oficial - Um porta-voz do governo da Ossétia do Norte disse que havia 354 reféns.

Os fatos - Na verdade, 1.181 reféns foram mantidos dentro da escola. Entre eles havia crianças, seus irmãos em idade pré-escolar que os haviam acompanhado à escola, pais e mães, avós e avôs, professores, funcionários administrativos e vizinhos da escola. A mídia russa afirma que o fato de as autoridades terem divulgado propositalmente um número inferior de reféns enfureceu os terroristas, que se tornaram ainda mais implacáveis.

A versão oficial - Moscou foi obrigada a acionar as forças especiais depois de serem ouvidas duas explosões no interior da escola e de os seqüestradores terem atirado contra as crianças pelas costas, quando que elas tentavam fugir.
O tiroteio começou pouco depois de um ônibus do governo russo ter entrado na escola para recolher os corpos em decomposição de até 20 pessoas que tinham sido mortas pelos terroristas nos dois dias anteriores. Os terroristas tinham permitido o acesso do ônibus, por razões humanitárias. As autoridades insistem que não planejavam invadir a escola e que foram pegas desprevenidas; o plano teria sido seguir adiante com as negociações.

Os fatos - Uma fita de vigilância que teria sido gravada pelas forças especiais russas mostra os terroristas, minutos antes da primeira explosão, discutindo entre si se ficavam ou fugiam. A fita leva a crer que a primeira bomba pode ter sido detonada como parte dessa desavença interna. Aparentemente, alguns dos terroristas achavam errado fazer crianças de reféns; eles teriam sido mortos por seus próprios companheiros.
Seja qual for a verdade, parece que os russos se preparavam para invadir a escola de qualquer maneira. Embora o presidente da Ossétia do Norte, Alexander Dzsokhov, tivesse dito que não permitiria que a escola fosse invadida, ele parece ter ordenado preparativos intensivos para esse cenário.
Fontes militares citadas pelo semanário russo "Novaya Gazeta" afirmam que não estavam ocorrendo negociações e que as autoridades não tinham intenção de atender a nenhuma reivindicação. Ruslan Aushev, ex-presidente da Inguchétia, que conseguiu entrar na escola e retirar 26 pessoas de lá, foi ouvido dizendo que "o governo abandonou todos à própria sorte".
Aushev afirmou que, na sexta-feira, os terroristas estavam dispostos a negociar, mas que houve uma explosão que levou os reféns a fugir e moradores locais a abrir fogo. Segundo uma mulher, um dos terroristas detonou uma bomba no ginásio por acidente.
Aushev atribui a culpa do que aconteceu a seguir aos moradores. "Pedimos a eles [os seqüestradores] que parassem de atirar. Ligamos para eles pelo celular. Eles disseram: "Nós já paramos de atirar, quem está atirando são vocês". Demos o comando de cessar-fogo. Mas uma "terceira força" estúpida interveio. Não sei como eles apareceram por lá. Estamos investigando isso. O fato é que alguns "milicianos" armados com fuzis de assalto decidiram libertar os reféns eles mesmos e abriram fogo contra a escola."
Aushev afirma que os terroristas acharam que estava acontecendo uma invasão das tropas russas e, então, detonaram seus explosivos, fazendo com que o teto do ginásio desabasse sobre as cerca de 500 pessoas que estavam no local. Depois disso, as tropas realmente começaram a atacar.
Mas é pouco provável que a verdade sobre o que realmente aconteceu em 3 de setembro algum dia venha à tona. Putin já recusou um inquérito público e disse que há versões conflitantes demais sobre o que aconteceu.

A versão oficial - Os russos disseram que o cerco foi planejado por um senhor de guerra inguche que teria vínculos com o senhor de guerra tchetcheno Shamil Basayev, o homem mais procurado da Rússia. Aparentemente a operação teria sido financiada por árabes ricos do Oriente Médio que teriam ligações com a Al Qaeda.

Os fatos - Os investigadores dizem que os terroristas recebiam ordens de Basayev pelo telefone. Um terrorista capturado pelos russos pareceu confirmar essa versão. Ele disse que os terroristas eram controlados por Basayev e por Aslan Maskhadov, o presidente rebelde da Tchetchênia.
"Nós nos reunimos na floresta, e o Coronel -esse é seu apelido- disse que devíamos tomar a escola em Beslan", disse o homem, que tinha cabelos escuros e curtos e não tinha barba. "Quando perguntamos ao Coronel por que deveríamos fazer isso, ele respondeu: "Porque precisamos iniciar uma guerra em todo o território do norte do Cáucaso"."
Quem planejou a operação o fez com grande cuidado, vigiando a escola com meses de antecedência. Terroristas que se fizeram passar por funcionários puseram grandes quantidades de armas, explosivos e munição dentro do prédio durante obras de manutenção da escola realizadas nas férias de verão. Algumas das armas estavam escondidas debaixo do piso da biblioteca da escola.
Outras escolas em Beslan também foram consideradas como alvos possíveis da ação, e os terroristas usaram pelo menos dois policiais para ajudá-los a passar por barreiras policiais. Não está claro se os policiais agiram por conta própria ou se foram obrigados ou pressionados a fazê-lo.

A versão oficial - Putin elogiou as forças especiais, louvando sua bravura e seus sacrifícios. Mais tarde, porém, admitiu que as coisas poderiam ter sido conduzidas de maneira melhor e que a segurança terá de ser intensificada.
Putin afirmou que a Rússia se enfraqueceu e disse que "os fracos são espancados". Ele também sugeriu que a transição econômica russa para uma economia de mercado tenha levado os órgãos de segurança a se enfraquecerem por falta de recursos vitais.

Os fatos - Um alto funcionário russo admitiu, depois da tragédia, que até 20 integrantes das forças especiais russas que morreram na ação foram abatidos por "fogo amigo".
Aslanbek Aslakhanov, o especialista do Kremlin sobre a região, disse que muitos desses homens receberam tiros nas costas de moradores locais revoltados. Desesperados para libertar os reféns, os moradores atiraram contra a escola de maneira indiscriminada.
As unidades de elite russas Alfa e Vimpel nunca antes sofreram baixas tão pesadas.

A versão oficial - Embora, num primeiro momento, as autoridades tenham afirmado ter recebido uma série de exigências dos terroristas contidas numa fita de vídeo jogada desde uma das janelas da escola, mais tarde se retrataram e disseram que a fita estava vazia.
Ao afirmar que as exigências dos terroristas eram vagas e mal formuladas, as autoridades deram a impressão de que os próprios seqüestradores não sabiam o que queriam. Essa idéia formava um contraste marcante com anúncios anteriores, segundo os quais os seqüestradores exigiam a retirada das tropas russas da Tchetchênia e a libertação de dezenas de combatentes presos.

Os fatos - Putin disse que os terroristas queriam "explodir" a região e suscitar choques étnicos e religiosos. Ele sugeriu que os rebeldes estariam tentando espalhar a sede de independência dos tchetchenos por toda a região, para que outras repúblicas do Cáucaso também comecem a lutar por sua autonomia.
As exigências iniciais quanto à retirada das tropas da Tchetchênia e a soltura de prisioneiros parecem ter sido verdadeiras. Aparentemente, os rebeldes exigiram que Putin assinasse um decreto presidencial para a retirada das tropas russas.


Tradução de Clara Allain


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