São Paulo, domingo, 09 de outubro de 2005

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EUA

Mal-entendidos enfrentados pela subsecretária Karen Hughes no Oriente Médio mostram dificuldade de "vender" valores americanos

Diplomacia pública do governo Bush patina

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

O discurso em tom messiânico de quinta-feira de George W. Bush, no qual comparou a Al Qaeda com o comunismo, e a primeira viagem de Karen Hughes, subsecretária de Estado para Diplomacia Pública, ao Oriente Médio, há dez dias, mostraram como a diplomacia pública americana está em descompasso com a realidade, já que a imagem global dos EUA está bastante arranhada.
Hughes, ex-conselheira de Bush nomeada em julho justamente para melhorar a imagem internacional dos EUA -minada pelo conflito no Iraque e por sua posição pró-Israel-, fez uma visita cheia de mal-entendidos e enfrentou forte oposição de mulheres sauditas ao tentar "vender" os valores americanos num encontro numa universidade considerada "liberal" para os padrões do país.
"A diplomacia pública [que tenta promover os interesses nacionais de um país por meio do entendimento de suas metas e de informações sobre suas políticas, buscando influenciar audiências estrangeiras] americana enfrenta uma batalha árdua por conta dos problemas que os EUA têm no Iraque, dos abusos impostos a presos em Guantánamo ou em Abu Ghraib e do desequilíbrio no tratamento da questão israelo-palestina", explicou à Folha Steven Cook, especialista em comunicação política do Council on Foreign Relations (Washington).
"Como essas políticas americanas não deverão mudar a curto prazo, Hughes deveria, portanto, ter privilegiado no Oriente Médio outros temas, como as reformas democráticas e o aumento das liberdades, em vez de ter tentado "vender" os valores americanos e de ter-se apresentado como uma mãe que trabalha e dá grande importância a seu direito de dirigir um carro", acrescentou Cook.
Steven Livingston, o diretor da Escola de Mídia e de Assuntos Públicos da Universidade George Washington, concorda. "Teria sido mais interessante para Hughes falar de temas que pudessem atrair a atenção do mundo árabe, como a abertura política e a liberdade de expressão. Também teria sido positivo mostrar que os EUA estão prontos para apoiar os que defendem esses valores."
"Atualmente, o maior obstáculo para a diplomacia pública dos EUA é que suas políticas parecem contradizer até mesmo esses valores de tempos em tempos. Assim, a legitimidade e a credibilidade que Hughes esperava que seu discurso tivesse foram gravemente colocadas em xeque pelas audiência árabes, para as quais as imagens de Guantánamo ou de Abu Ghraib ainda são fortes e o sangue derramado no Iraque é sobretudo árabe e muçulmano", completou.

Comportamento deletério
De acordo com Joseph Nye, um dos papas do estudo das relações internacionais e fundador de sua escola neo-realista, é imprescindível que o governo Bush abrande suas posições em relação à guerra ao terror, ao Iraque e à questão israelo-palestina. "Precisamos de aliados fortes. O modo unilateralista como a atual administração se comporta na cena internacional já é deletério para seus interesses hoje e o será ainda mais a médio e longo prazos", apontou Nye.
"É, por conseguinte, vital alterar profundamente a essência de certas políticas americanas e explicar didaticamente essas mudanças. Caso contrário, qualquer esforço de diplomacia pública por parte de Washington será fadada ao fracasso. Afinal, quando alguém sente uma dor, não adianta lhe dizer que essa dor não existe."
Para Kenneth Waltz, autor de "Theory of International Politics" (teoria da política internacional), o tom messiânico de certos discursos de Bush dificulta ainda mais os esforços para melhorar a imagem dos EUA.
"Pessoas ao redor do mundo acabam imaginando que ele acredite que tenha uma missão divina ao combater o terror. Com isso, muitos crêem que ele pense ser o dono da verdade e que só os EUA possam "salvar a humanidade". Indubitavelmente, tal percepção só faz alimentar a desconfiança em relação aos EUA, que, nos últimos anos, invadiram unilateralmente o Iraque e provocaram o conflito mais sangrento deste século", analisou Waltz.
Para Livingston, é, portanto, crucial que a política dos EUA para o Iraque seja reformada rapidamente. "A verdade é que Bush deve ser o homem mais motivado do mundo para encontrar um jeito de sair do Iraque, mas isso parece ser impossível por ora. Os EUA ocuparam o país e não sabem o que farão para solucionar o problema", indicou.
"Outra necessidade para melhorar a imagem dos EUA, sobretudo no mundo árabe, é uma mudança na política em relação a Israel e aos palestinos. Bush deve parecer mais equilibrado em relação ao conflito, que fomenta o ódio aos americanos há muito tempo", afirmou Livingston.
Ademais, como frisou Cook, em vez de "vender" seus valores, os EUA devem concentrar-se nas reformas, tema que atrairá alas progressistas no mundo árabe. Todavia isso compelirá Washington a distanciar-se de alguns de seus aliados na região. "É óbvio que as relações dos EUA com [Hosni] Mubarak [ditador egípcio] também são importantes, pois ninguém gosta de viver sob um regime autoritário", disse Cook.

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