São Paulo, domingo, 10 de março de 2002

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INTOLERÂNCIA

Não há liberdade de culto no país, e conversão de muçulmano a outra religião pode ser punida com a morte

Arábia Saudita reprime as religiões não islâmicas

ELAINE SCIOLINO
DO "THE NEW YORK TIMES", EM RIAD

Em um lugar secreto para todos menos os que frequentam o local todo domingo à noite, um jovem padre católico faz uma coisa perigosa: celebra uma missa.
Ele chega à paisana e tira suas vestes, sua Bíblia, seu crucifixo e seu cálice de um armário trancado. A discrição é essencial, diz, porque a Mutawwain, polícia moral empregada pelo reino que patrulha as ruas da capital saudita, ameaçou persegui-lo.
Ser testemunha da fé adquire um significado especial nessa teocracia monárquica. Aqui, o islã é a única religião oficial, e todos os cidadãos devem ser muçulmanos. A Constituição é o Alcorão e os ensinamentos do profeta Muhammad. O proselitismo é punível com a prisão. A importação e a distribuição de Bíblias são proibidas. A conversão de um muçulmano a outra religião é considerada apostasia, punível com a morte, se o acusado não se retratar.
Não-muçulmanos que realizem atividades religiosas abertamente correm o risco de ser presos, chicoteados e deportados.
Ao descrever a Arábia Saudita em seu relatório sobre liberdade religiosa de 2001, o Departamento de Estado dos EUA foi direto: "A liberdade de culto não existe".
A situação é particularmente delicada para os soldados americanos. A eles é oferecida uma variedade de serviços religiosos, com a ajuda de capelães militares. Mas eles não podem praticar sua religião em público. Os soldados que usam estrelas de Davi ou crucifixos precisam mantê-los escondidos debaixo da roupa.
O presidente dos EUA, George W. Bush, já chamou o islã de uma grande religião e descreveu os americanos como religiosos e tolerantes. Em um discurso ao Congresso pouco depois de 11 de setembro, ele disse que os "bárbaros" que haviam atacado os EUA "odeiam nossas liberdades, nossa liberdade de culto, nossa liberdade de expressão, nossa liberdade para votar e nos reunir e discordar uns dos outros".
Mas nem Bush nem nenhum de seus assessores para assuntos de segurança nacional criticaram a recusa da Arábia Saudita em permitir que americanos e outros estrangeiros pratiquem suas religiões abertamente. Os EUA, assim como outros países, concordaram com o pacto ditado pelos sauditas: se você tiver de praticar sua religião, faça-o em segredo.
Em um domingo recente, cerca de 200 católicos de pelo menos 20 países se reuniram para a missa. Entre eles estavam diplomatas, executivos, motoristas, empregadas domésticas e crianças.
Um dos organizadores verificava seus nomes à porta antes de deixá-los entrar em um salão de festas. No local, um altar improvisado havia sido montado com um crucifixo, velas e cestas de flores. Do lado de fora, policiais sauditas vigiavam a entrada, aparentemente para proteger o serviço da menos disciplinada polícia moral, mas talvez também para anotar os nomes dos presentes.
Os fiéis recitaram a liturgia, cantaram hinos, trocaram saudações de paz e receberam a comunhão. Alguém havia levado as cadeiras embora, então eles permaneceram de pé durante toda a missa, que durou mais de uma hora.
O reino proíbe sacerdotes não muçulmanos de entrar no país para realizar serviços religiosos, apesar de permitir a entrada de alguns por outras razões. Há poucos padres e pastores residentes. Os fiéis frequentemente conduzem seus próprios rituais. Serviços protestantes, mórmons e judaicos são realizados em segredo.
O relatório do Departamento de Estado sobre liberdade religiosa afirma que não há uma definição clara de "prática religiosa privada" e cita exemplos de "execução arbitrária" da norma que estabelece o islã como religião única.
A dúvida sobre o que é privado foi destacada em meados do ano passado, quando um executivo indiano que estava deixando o país alugou um salão e fez uma festa de despedida, segundo diplomatas estrangeiros presentes. Quando os 800 convidados chegaram, uma missa foi iniciada.
As autoridades sauditas ignoraram o fato. Mas, quando ele fez a mesma coisa pela segunda vez, prenderam-no -e mais outras 15 pessoas. Pelo menos metade dos detidos foi deportada.
"A regra é: se o serviço for discreto e pequeno, tudo bem. Mas 800 pessoas estavam acima dos limites", afirmou um diplomata ocidental.
O islamismo foi fundado no século 7º pelo profeta Muhammad, que, crêem os muçulmanos, recebeu revelações de Deus por meio do arcanjo Gabriel e as registrou no que ficou conhecido como o Alcorão. Moisés e Jesus estão entre os profetas homenageados no livro sagrado muçulmano.
Apesar de a prática do cristianismo e do judaísmo ser permitida em muitos países árabes e muçulmanos, esse não tem sido o caso no reino saudita, que abriga Meca e Medina, os dois santuários mais sagrados do islamismo.
Osama bin Laden, que nasceu na Arábia Saudita, promete purgar a presença militar "infiel" americana do país há anos. Essas ameaças tornam o assunto da prática religiosa de seus soldados servindo na Arábia Saudita um assunto particularmente delicado para funcionários do governo dos EUA, que relutam em discuti-lo.
Mas os próprios soldados não vêem problemas em falar no assunto. "Tenho três Bíblias", disse um jovem militar em uma instalação militar americana, que afirmou frequentar serviços religiosos protestantes. "Eles que experimentem tirá-las de mim."
Em uma entrevista recente, o príncipe herdeiro Abdullah, o governante de fato da Arábia Saudita, foi questionado por uma repórter americana se seu reino tinha um problema de imagem entre os americanos.
Os americanos não entendiam a ausência de eleições, as limitações aos direitos das mulheres e a intolerância em relação a outras religiões, disse a repórter, acrescentando que, durante uma visita turística à Arábia Saudita há quase 20 anos, quando ainda era solteira, ela havia sido impedida de frequentar a missa.
Abdullah respondeu que a presença dos dois santuários em solo saudita era o "principal obstáculo" à realização de mudanças no reino. "Nossa fé e a nossa cultura dividem o país", afirmou o príncipe.
Ele não tocou no assunto da liberdade religiosa.



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