UOL


São Paulo, quinta-feira, 10 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Visitar hospital é como descer ao inferno

ROBERT FISK
DO "INDEPENDENT", EM BAGDÁ

Parecia uma cena da Guerra da Criméia. Um hospital de feridos gritando e com sangue escorrendo pelo chão, impregnando meus sapatos, as roupas dos médicos na lotada sala de emergências, alagando os corredores e sujando cobertores e lençóis.
Os civis e soldados iraquianos trazidos para o hospital Mártir Adnan Khairallah são o lado obscuro da vitória e da derrota. A prova final, assim como os mortos que são enterrados em poucas horas, de que essa guerra é a falência do espírito humano.
Enquanto me via caminhando em meio a camas e homens gemendo em uma visita que parecia ser ao inferno, uma questão tomou conta da minha cabeça: Essa guerra é por causa dos atentados de 11 de setembro? Pelos direitos humanos? Pelas armas de destruição em massa?
Em um corredor lotado, eu me deparei com um homem de meia-idade em uma maca encharcada de sangue. Ele tinha um ferimento na cabeça que era quase indescritível. Do buraco de seu olho, coberto com um lenço, jorrava sangue no chão. Uma menina estava em uma pequena cama, com uma perna quebrada e outra com um grave ferimento causado por estilhaços de bombas.
O nome dela é Rawa Sabri e enquanto eu caminhava por esse lugar de terror, os bombardeios americanos voltaram a atingir o rio Tigre, do lado de fora, trazendo de volta o horror dos bombardeios que os feridos haviam sofrido apenas horas antes. A ponte que eu havia acabado de atravessar para chegar ao hospital era alvejada mais uma vez. O prédio do hospital foi chacoalhado.
A enfermeira símbolo da Guerra da Criméia, Florence Nightingale, nunca chegou a essa parte do antigo Império Otomano. Mas o equivalente dela aqui no hospital é o cirurgião-chefe Khaldoun al Baeri, um gentil e falante homem que está dormindo uma hora por dia nos últimos seis dias.
Ele tenta salvar vidas com apenas um gerador elétrico e utilizando apenas metade da capacidade do hospital, já que, sem elevadores, não é possível levar pacientes banhados de sangue para os andares mais altos.
Baeri fala como um sonâmbulo, tentando descrever como é difícil pensar após quatro cirurgias nas quais ele extraiu metais de cérebros dos pacientes.
O médico acrescenta que não sabe onde estão os seus familiares. "Nossa casa foi atingida e os meus vizinhos me enviaram uma mensagem afirmando que eles partiram para algum lugar. Eu não sei para onde. Tenho duas filhas pequenas, gêmeas, e eu disse a elas que era preciso ter coragem porque o pai delas tem que trabalhar dia e noite no hospital por questão de humanidade. E agora não sei onde elas estão", afirmou. Ele começou a chorar e não teve condições de se despedir de mim.
Havia um homem no segundo piso com um ferimento no pescoço. Para os médicos, não seria possível estancar o sangramento. Ele ficou jogado no chão, esperando a morte. O homem também tinha curativos no estômago que não conseguiam parar o sangramento. O irmão dele, postado ao lado, colocou as mãos sobre mim e berrava: "Por quê? Por quê?"
Uma pequena criança, com curativo no nariz e outros espalhados pelo corpo, estava jogada em um cobertor. Ela precisou esperar por quatro dias até ser operada. Seus olhos pareciam mortos. Não tive coragem de perguntar à mãe dela se era um menino ou uma menina, tal o número de ferimentos no seu corpo.
Deixei o hospital e lembrei que o nome do local era uma homenagem a um ministro da Defesa de Saddam Hussein, morto em acidente de helicóptero. Pensei: mesmo nas últimas horas da batalha por Bagdá, as vítimas têm que morrer em um hospital cujo nome é de um assassino.


Texto Anterior: Bagdá
Festejos e saques marcam queda da capital iraquiana

Próximo Texto: Queda de estátua é o símbolo da invasão dos EUA
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.