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São Paulo, quinta-feira, 10 de abril de 2003

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ARTIGO

A maldição do mundo árabe

TAHAR BEN JELLOUN
DO "LE MONDE"

Uma lenda árabe diz que uma vez a cada cem anos um homem que não é nem herói nem mártir, um homem providencial, uma espécie de profeta leigo, um sábio dotado de lucidez e justiça, se ergue e salva uma nação. O mundo árabe espera por esse homem há muito tempo. Se esse homem existe, estou certo de que ele não sente vontade nenhuma de erguer-se para vir socorrer um Saddam responsável por tantas infelicidades.
Entretanto, nesse mundo as organizações políticas progressistas foram reprimidas. A sociedade civil tem dificuldade em emergir. O Estado de direito está em falta em muitos países árabes. Em contrapartida, o discurso irracional, religioso e nacionalista, avança de vento em popa. E a população manifesta sua ira quando pode.
O drama é que os líderes que reinam pelo poder e a brutalidade conseguem fixar-se no imaginário de grande parte das populações árabes. Aparecem para elas como heróis, herdeiros de Saladino. Esses ditadores se fazem passar por salvadores, quando na realidade não passam dos "novos-ricos" da política, sem moral nem princípios, opressores de seus povos que, a longo prazo, levam ao retrocesso do mundo árabe, a sua derrota e a sua grande miséria intelectual e política.
É difícil, hoje, exigir de uma multidão árabe que se manifesta contra a guerra no Iraque que trace uma distinção entre o povo e seu chefe. É difícil lhe dizer: "Defendo a causa do povo iraquiano e condeno Saddam". Essa confusão é intolerável.
Graças a Bush, o fundamentalista, à arrogância de seus conselheiros e, sobretudo, à ignorância deles no que diz respeito à cultura e à psicologia de uma sociedade de clãs, como é a iraquiana, Saddam está ganhando o status de "herói". As populações árabes se esquecem de todos os crimes que ele cometeu e das guerras atrozes que provocou. Manifestantes no Egito, na Jordânia e no Marrocos gritam palavras de ordem inspiradas diretamente nos movimentos islâmicos. Estamos preparando novas derrotas no front da democracia e da liberdade individual.
Se hoje estamos atolados nessa nova tragédia, na qual a perdedora, de uma maneira ou de outra, será a democracia no mundo árabe, é porque esse mundo árabe está a tal ponto ferido, dilacerado e dividido que está se desfazendo como entidade. Então ele se refugia na fé religiosa, confia em charlatães que sabem lhe falar, reforçando suas certezas e seus preconceitos. Encontra no discurso religioso, mesmo que seja mal compreendido, um conforto, um apaziguamento que os políticos não souberam lhe proporcionar.
A tudo isso se misturam o irracionalismo e uma atitude perversa de esperar para ver. As pessoas que fazem manifestações de rua não hesitam mais em constatar aquilo que realmente dói: que o mundo árabe não existe. E a responsabilidade da equipe de Bush é esmagadora, de uma gravidade sem precedentes. Ela participa desse trabalho de subdesenvolvimento econômico e regressão intelectual, maldição que tomou conta do mundo árabe.


Tahar Ben Jelloun é escritor marroquino.


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