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A força do nacionalismo
DEMÉTRIO MAGNOLI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nos próximos dias, o Iraque
se tornará um protetorado
militar americano. O regime de
protetorado estará disfarçado pelo arremedo de um governo títere
iraquiano e, talvez, pela partilha
de tarefas administrativas e humanitárias com a ONU. O poder
de fato, todos sabem, ficará nas
mãos de Washington.
Os neoconservadores que controlam a política externa da administração Bush prometem um
Iraque democrático, que serviria
de exemplo para uma "revolução
democrática" no mundo árabe.
Acreditam na gratidão do povo
iraquiano para com a hiperpotência que traz a democracia na ponta dos fuzis. Parecem pensar que o
Iraque conheceu apenas o tribalismo e a ditadura de Saddam
Hussein, nunca o nacionalismo. É
um modo linear e simplista de interpretar a história do Iraque.
Na Antiguidade, a Mesopotâmia foi o berço das cidades-Estado sumérias, onde floresceram as
civilizações acadiana, babilônia e
assíria. Sofreu invasões persas e
romanas. Mas sua identidade étnica, linguística e religiosa foi
moldada pela invasão árabe do
século 7º. Bagdá, fundada pela dinastia abácida para substituir Damasco como sede do califado, tornou-se o centro do mundo árabe-muçulmano que se estendia do
Magreb ao Afeganistão.
No século 9º, no Iraque, irrompeu a querela de sucessão que originou a dissidência xiita. Sob o califado abácida, o árabe tornou-se
uma língua geral dos fiéis do islã,
difundindo-se pela África do Norte e grande parte do Oriente Médio. Uma cultura compartilhada
assinalou o apogeu do mundo
árabe, que contrastava com o
atraso, a selvageria européia.
O Império Otomano estabeleceu o seu poder sobre o mundo
árabe nos séculos 16 e 17. Bagdá
caiu em mãos otomanas em 1534,
foi perdida logo depois e reconquistada em 1638.
A estrutura imperial, a maior
que se conhecera desde a queda
de Roma, conseguiu estabilidade
duradoura respeitando a pluralidade de culturas e os privilégios
das elites nas diferentes partes do
império. Sua lenta decadência, no
século 19, abriu caminho para as
potências européias, que colonizaram o norte da África.
A 1ª Guerra assinalou o colapso
otomano e a fragmentação geopolítica do Oriente Médio. A
França estabeleceu mandatos na
Síria e no Líbano. O Reino Unido,
que tinha declarado protetorado
sobre o Egito, tornou-se potência
mandatária na Palestina, na
Transjordânia e no Iraque.
A Arábia Saudita unificou-se,
mas os britânicos, determinados
a controlar as fontes e rotas do petróleo, impediram a unidade da
península e retalharam a orla do
golfo Pérsico em protetorados.
Essa é a origem do Kuait, do Qatar, de Barein e dos Emirados
Árabes Unidos.
O poder britânico no Iraque sofreu a contestação de uma revolta
tribal, com tinturas nacionalistas,
em 1920. Londres acomodou as
tensões concedendo o autogoverno, sob controle britânico, e coroando Faiçal 1º rei do Iraque. O
pai de Faiçal, Husayn, liderara a
revolta árabe contra o sultão otomano durante a guerra mundial,
lutando ao lado do célebre agente
britânico T.E. Lawrence.
Husayn confiou nas palavras do
"Lawrence da Arábia", que queria
"fazer uma nova nação" e, depois
da guerra, liderou uma revolta nacionalista na Síria. Os franceses
sufocaram a revolta, contando
com a indiferença dos britânicos.
A coroação de Faiçal foi o prêmio
de consolação de Londres, que
desenvolvia uma sinuosa política
de sedução das elites árabes.
O nacionalismo monárquico
gerou uma independência formal, em 32, e se esgotou no pós-guerra, sob o impacto da emergência do Baath (Ressurreição). O
partido surgiu na Síria, como expressão de um pensamento modernizante e laico, amparado nas
classes urbanas educadas.
Seu principal teórico, o cristão
Michel Aflaq, sustentava a existência de uma única nação árabe,
herdeira da tradição cultural do
islã, com a convivência de diversas confissões religiosas. Essa nação deveria ter o direito de constituir um Estado unificado.
O baathismo original, mesclado
com os elementos da reforma social e do socialismo, difundiu-se
pelos países vizinhos. No Iraque,
o baathismo inspirou a revolução
militar de 1958, que derrubou Faiçal 2º e instalou a República.
O nacionalismo baathista distingue-se do nacionalismo monárquico. O último fazia a nação
repousar no direito da dinastia; o
primeiro, na unidade do povo.
Por isso, nos anos 60 e 70, o poder
baathista entrou em conflito com
o nacionalismo curdo. Ao mesmo
tempo, o Estado forte modernizava o país, promovendo a educação pública, a igualdade política
das mulheres, a nacionalização da
indústria petrolífera, a dragagem
dos pântanos e a irrigação.
Saddam Hussein chefiou o núcleo baathista das coalizões militares que governaram o Iraque na
década de 70. Em 79, num golpe
palaciano, assumiu a Presidência.
Durante a Guerra Irã-Iraque (80-88), estruturou uma ditadura feroz, baseada na fusão do Baath
com o aparelho de Estado.
A Guarda Republicana, as milícias paramilitares e os órgãos de
segurança interna formaram a espinha dorsal de um regime assentado sobre o clã do presidente,
que se origina na cidade de Tikrit.
Ele não deve ser confundido
com uma ditadura militar de camarilha, "à la boliviana". É um ramo sangrento do tronco baathista, que sustenta a árvore do nacionalismo iraquiano. O ramo caiu,
mas a árvore tem raízes mais profundas do que crêem os neoconservadores de Washington.
Demétrio Magnoli, 44, é editor do jornal
'Mundo Geografia e Política Internacional'
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