São Paulo, domingo, 10 de abril de 2005

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ARTIGO

Igreja precisa de um papado reformador

PHILIP STEPHENS
DO "FINANCIAL TIMES"

Os católicos choram a morte de um homem profundamente santo. Milhões de pessoas em todo o mundo acenderam velas quando o papa João Paulo 2º foi enterrado. A missa de corpo presente, na basílica de São Pedro, fez menção a um pontífice pleno de coragem e humanidade.
Uma galáxia de líderes políticos e as multidões sem precedentes em Roma atestaram a influência singular de João Paulo 2º, que se estendeu para muito mais longe do que a igreja de Karol Wojtyla.
No entanto, ao mesmo tempo em que choram sua morte, os católicos só podem esperar que o futuro lhes reserve um papado diferente do dele, menos auto-engrandecedor.
O catolicismo prosperou em boa parte do mundo durante os 26 anos que durou o papado de João Paulo 2º. Ele enxergava seu pontificado como uma peregrinação constante. Ele visitou católicos na Ásia, na África e na América Latina que, até então, dependiam de um grupo cada vez menor de missionários para manter sua fé. João Paulo 2º será lembrado sobretudo por sua participação na queda do comunismo, mas em todo lugar para onde ia ele defendeu a luta contra a tirania.
Entretanto, em seu núcleo europeu e nos EUA -por sinal, país no qual o pontífice polonês nunca se sentiu à vontade-, as congregações católicas vêm diminuindo, e as vocações, também. É difícil recordar qualquer outro ocupante da Santa Sé que tenha sido tão admirado quanto João Paulo 2º, mas que, ao mesmo tempo, tenha se distanciado tanto de seu rebanho. Muitas das pessoas que hoje se ajoelham diante da chama bruxuleante da recordação ignoram há muito tempo os editos de João Paulo 2º na prática de sua fé.
O cisma freqüentemente é descrito como sendo uma divisão entre leigos que lutam para dar conta das complexidades morais e dos dilemas sociais de nossa era e, do outro lado, uma liderança católica em Roma determinada a defender e a conservar as verdades eternas da fé cristã.
O campo de batalha dessa disputa vem sendo a individualidade moral -ou seja, até que ponto o clima social de nossa época ou os avanços na tecnologia médica e nos conhecimentos biológicos podem ou devem ser incorporados aos ensinamentos católicos. São discussões extremamente angustiantes e difíceis, que transcendem a trivial caricatura de uma simples batalha entre o relativismo moral modernista e o absolutismo reluzente das verdades reveladas.
Entretanto, por trás das muitas controvérsias relacionadas à sexualidade humana, ao casamento, à igualdade entre os sexos e a todo o resto, há uma discussão igualmente importante sobre uma confusão promovida deliberadamente pelo Vaticano entre leis criadas pelos homens e verdades eternas. É essa confusão que o próximo papa precisará desfazer.
O pontificado de João Paulo 2º seguia o modelo de uma monarquia do século 19. Sua reativação da afirmação de infalibilidade papal não se baseou nos Evangelhos ou no Vaticano 1º, o concílio convocado por Pio 9º em 1869.
Deixando de lado seu anti-semitismo visceral, as preocupações de Pio 9º diziam respeito mais ao poder pessoal do que à verdade teológica. Um século mais tarde, o papa João Paulo 2º exigia a mesma obediência cega à interpretação que ele fazia das leis de Deus.

Dúvidas
A questão de quando a vida começa, que está à base das discussões sobre a contracepção, o aborto e as pesquisas com células-tronco, angustia a igreja praticamente desde que ela surgiu.
Já houve teólogos eminentes a favor de cada um dos lados na discussão. Santo Tomás de Aquino assumiu a posição curiosa de que a vida começa antes mesmo de o óvulo ser fertilizado. Para ele, a alma humana reside no espermatozóide. A masturbação é um crime comparável ao homicídio.
Duvido que mesmo o cardeal Joseph Ratzinger, que, na condição de atual líder da Congregação para a Doutrina da Fé, chefia a Santa Inquisição do Vaticano nos dias de hoje, defenderia uma visão tão equivocadamente radical.
Um consenso que perdurou durante boa parte do século passado era que a vida começa entre o momento da concepção e o nascimento; 40 dias após a fertilização parecia ser um momento provável para se dar a fusão da alma com a forma humana.
O mais importante é que, durante a maior parte de sua existência, a igreja sempre reconheceu a existência de incertezas biológicas e teológicas. Procuramos em vão uma só verdade na vida de Jesus.

Certeza
Karol Wojtyla, que não era teólogo, desdenhou essas dúvidas justificadas. Não importava para ele que houve uma época, no passado, em que os clérigos podiam se casar e que as mulheres podiam ser diáconas.
Quer se tratasse do celibato dos padres, da ordenação de mulheres no sacerdócio ou do uso de camisinhas para defender a vida contra o flagelo da Aids na África, a obediência a suas encíclicas tinha de ser priorizada, acima de qualquer precedente histórico ou argumento racional.
Foi assim que o primitivismo doutrinal de organizações como o Opus Dei tomou o lugar do espírito de investigação teológica encorajado pelos jesuítas e outras ordens religiosas.
O pontificado de João Paulo 2º foi um papado dedicado a seu próprio poder. Ele defendeu a autoridade temporal em detrimento de sua missão espiritual.
Assim, a recusa do Vaticano em tomar medidas decisivas em resposta à crise suscitada pelos padres pedófilos priorizou a proteção da hierarquia e o bem-estar material da Igreja Católica, passando à frente das necessidades de seu rebanho.
Mas existe um paradoxo aqui. Seu próprio autoritarismo roubou autoridade à igreja. Não me refiro apenas aos bancos vazios das igrejas da Irlanda, da Itália ou da Espanha. Uma grande parcela dos católicos praticantes ignora os editos do Vaticano. Para cada um que incorreu num lapso, há dois, três ou quatro outros que continuam a receber os sacramentos ao mesmo tempo em que se norteiam por suas próprias consciências em assuntos relativos à ética pessoal.
Diversos padres praticam um conluio nesse sentido, exortando seus fiéis a examinar suas almas com cuidado, mas continuando a dar a comunhão àqueles que se negam a arrepender-se de pecados que têm a certeza de não terem cometido. A confissão está se tornando o sacramento perdido do catolicismo.
Alguém certa vez observou, fazendo referência a um primeiro-ministro britânico, que "ele ocupa o cargo, mas não o poder". Algo semelhante poderia ser dito sobre o último papa.
É compreensível que o foco das atenções agora se volte às personalidades e às inclinações doutrinais dos candidatos a sucedê-lo no trono de Pedro. Será o próximo sumo pontífice outro italiano, ou será que o conclave, em lugar da Europa, vai buscar um candidato na América Latina ou na África? Será que o cardeal Ratzinger vai manipular o conclave ou os cardeais reunidos, quase todos nomeados pelo próprio João Paulo 2º, encontrarão fé suficiente para decidir por conta própria?
O mais importante é se o próximo a ocupar o trono de Pedro será suficientemente sábio e forte para compreender que a Igreja precisa de um papado reformado -ou seja, um monarca constitucional, e não absolutista.
O ponto de partida seria a volta ao espírito de colegialidade episcopal visualizado pelo Vaticano 2º, deixando de lado o conceito da infalibilidade do papa. É preciso voltar a traçar a distinção vital entre a palavra de Cristo e a dos guardiões temporários de sua igreja.
Os católicos não podem esperar respostas fáceis ou rápidas aos dilemas morais dos nossos tempos. Eles podem pedir ao novo papa que os lidere num espírito de caridade e humildade agostiniana.


Tradução de Clara Allain

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