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COMENTÁRIO
Tirania popular na Califórnia
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
O processo de votação na Califórnia, que resultou na vitória de
Arnold Schwarzenegger, representa um significativo questionamento do modelo de democracia
formulado pelos americanos a
partir dos debates constitucionais
de 1787-88. E não é por causa do
burburinho em torno do governador-ator, visto que ele não foi o
primeiro e provavelmente não será o último canastrão de Hollywood a ter pretensões políticas. O
fato é que o "recall" do voto na
Califórnia contraria o princípio
de estabilidade incrustado nas bases institucionais dos EUA.
O que tem aparência de democracia -a possibilidade de, pelo
voto direto, interromper o mandato de um governador de Estado
a qualquer tempo- pode ser, na
verdade, expressão de tirania.
Trata-se de uma forma de esvaziar o poder da autoridade eleita,
tornando-a refém dos desejos da
"maioria". Dessa maneira, o eleito, para manter-se no cargo, governa ao sabor das paixões, sem
considerar o interesse coletivo, o
que costuma levar a crises políticas, desordens econômicas e
ameaças ao Estado de Direito.
O princípio da democracia presente na formulação da Constituição dos EUA (e modelo para boa
parte do mundo) é o de que o poder deve ser entregue, por meio
de eleições, a alguém que se comprometa a governar para todos, e
não em respeito a objetivos paroquiais, dentro de um sistema de
fiscalização institucional que impeça o abuso desse poder. O governante deve ter um mandato estipulado, sujeito a interrupções
somente em casos extremos, para
que se estabeleça claramente um
projeto estável de administração
sobre os bens públicos.
James Madison (1751-1836), um
dos pais da Constituição americana, chegou a dizer que frequentes
"apelos ao povo" (eleições) acabam por impossibilitar que o governo seja objeto de "veneração",
isto é, respeito, sem o qual não se
cria a "necessária estabilidade".
A defesa da estabilidade político-institucional não surgiu por
acaso. Os debates que resultaram
na Constituição dos EUA foram
convocados justamente em meio
a um caos administrativo dentro
dos Estados americanos e entre
eles. Tornados independentes do
Reino Unido, esses Estados adotaram mecanismos de governança e legislação que, em resumo,
contestavam todo tipo de autoridade central, em nome da "liberdade" e da "soberania" populares,
numa reação ao período de submissão à Coroa britânica.
Os Legislativos estaduais, considerados os autênticos representantes da população, tinham poder absoluto sobre os destinos da
administração e nenhum compromisso com os demais Estados.
Disso resultou que cada Estado
estabelecia suas regras, muitas
das quais se chocavam com as dos
vizinhos -alguns chegaram inclusive a ter moeda própria e a revogar dívidas de seus agricultores
com outros Estados. Internamente, essa "liberdade" popular extrema significava eleições frequentes, anuais, tornando os eleitos
meros delegados de interesses
menores e mutáveis. A óbvia
ameaça que tal modelo representava para as bases republicanas do
novo país inspirou os formuladores da Constituição a construir
um sistema que a evitasse.
Passados pouco mais de 200
anos, porém, as lições desse debate parecem ter sido ignoradas pela
poderosa Califórnia -e, portanto, por uma parte importante da
sociedade dos EUA, sugerindo
uma desilusão com os mecanismos tradicionais da política e, talvez, com alguns dos princípios da
democracia americana.
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