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São Paulo, sexta-feira, 10 de outubro de 2003

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COMENTÁRIO

Tirania popular na Califórnia

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

O processo de votação na Califórnia, que resultou na vitória de Arnold Schwarzenegger, representa um significativo questionamento do modelo de democracia formulado pelos americanos a partir dos debates constitucionais de 1787-88. E não é por causa do burburinho em torno do governador-ator, visto que ele não foi o primeiro e provavelmente não será o último canastrão de Hollywood a ter pretensões políticas. O fato é que o "recall" do voto na Califórnia contraria o princípio de estabilidade incrustado nas bases institucionais dos EUA.
O que tem aparência de democracia -a possibilidade de, pelo voto direto, interromper o mandato de um governador de Estado a qualquer tempo- pode ser, na verdade, expressão de tirania. Trata-se de uma forma de esvaziar o poder da autoridade eleita, tornando-a refém dos desejos da "maioria". Dessa maneira, o eleito, para manter-se no cargo, governa ao sabor das paixões, sem considerar o interesse coletivo, o que costuma levar a crises políticas, desordens econômicas e ameaças ao Estado de Direito.
O princípio da democracia presente na formulação da Constituição dos EUA (e modelo para boa parte do mundo) é o de que o poder deve ser entregue, por meio de eleições, a alguém que se comprometa a governar para todos, e não em respeito a objetivos paroquiais, dentro de um sistema de fiscalização institucional que impeça o abuso desse poder. O governante deve ter um mandato estipulado, sujeito a interrupções somente em casos extremos, para que se estabeleça claramente um projeto estável de administração sobre os bens públicos.
James Madison (1751-1836), um dos pais da Constituição americana, chegou a dizer que frequentes "apelos ao povo" (eleições) acabam por impossibilitar que o governo seja objeto de "veneração", isto é, respeito, sem o qual não se cria a "necessária estabilidade".
A defesa da estabilidade político-institucional não surgiu por acaso. Os debates que resultaram na Constituição dos EUA foram convocados justamente em meio a um caos administrativo dentro dos Estados americanos e entre eles. Tornados independentes do Reino Unido, esses Estados adotaram mecanismos de governança e legislação que, em resumo, contestavam todo tipo de autoridade central, em nome da "liberdade" e da "soberania" populares, numa reação ao período de submissão à Coroa britânica.
Os Legislativos estaduais, considerados os autênticos representantes da população, tinham poder absoluto sobre os destinos da administração e nenhum compromisso com os demais Estados. Disso resultou que cada Estado estabelecia suas regras, muitas das quais se chocavam com as dos vizinhos -alguns chegaram inclusive a ter moeda própria e a revogar dívidas de seus agricultores com outros Estados. Internamente, essa "liberdade" popular extrema significava eleições frequentes, anuais, tornando os eleitos meros delegados de interesses menores e mutáveis. A óbvia ameaça que tal modelo representava para as bases republicanas do novo país inspirou os formuladores da Constituição a construir um sistema que a evitasse.
Passados pouco mais de 200 anos, porém, as lições desse debate parecem ter sido ignoradas pela poderosa Califórnia -e, portanto, por uma parte importante da sociedade dos EUA, sugerindo uma desilusão com os mecanismos tradicionais da política e, talvez, com alguns dos princípios da democracia americana.


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