São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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Epidemia atinge jovens; alcoolismo e caos na saúde reduzem em cinco anos a vida da população masculina

Aids acelera crise demográfica na Rússia

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

A Rússia está doente. Melaine Zipperer, especialista em Aids na OMS (Organização Mundial da Saúde), disse à Folha que aquele país pode estar hoje com até 1,4 milhão de soropositivos, ou 2,6% da população adulta.
Os números das autoridades locais são menos alarmantes: 292 mil. Mas há um consenso entre especialistas estrangeiros de que a subnotificação é generalizada.
Não há dinheiro ou estímulo para medicar, atrair grupos de risco aos ambulatórios e, com isso, aproximar a realidade das estatísticas. Só 1.800 pacientes recebem medicamentos anti-retrovirais. No Brasil, eles são 148 mil.
O HIV começou a se espalhar pela Rússia a partir de 1987. Pouco depois veio abaixo o Estado soviético. E com ele entraram em colapso alguns serviços públicos, essenciais, como o de saúde.
Nicholas Eberstadt, demógrafo e especialista em saúde pública russa no American Entreprise Institute (Washington), alerta que não se romantize a rede de assistência médica no período do comunismo.
Havia uma invejável quantidade de médicos por habitantes. Mas o sistema era ineficiente. Funcionava em casos de infecções simples (tifo, cólera). Mas lidava muito mal com doenças como o câncer e as cardiovasculares.
Apesar dos pesares, disse ele à Folha, a expectativa de vida caiu drasticamente entre os homens após o fim da URSS.
Em 1991, um cidadão poderia viver 63,5 anos. Em 2002, a esperança de vida estava em 58,6 anos, cinco anos a menos. Dependendo dos efeitos da Aids, em 2025 um homem russo viverá em média só até os 55 anos, diz o demógrafo.
Entre as mulheres, a queda foi menos violenta: de 74,3 para 72,1 anos. Mas é uma expectativa de vida mais baixa que a de 1965.
Em 2001, morriam 171 adultos para cada 100 crianças nascidas. A baixa natalidade também acelera o atual retrocesso demográfico.
Um outro especialista norte-americano, Murray Feshbach, autor de "Rússia"s Health and Demographic Crisis" (saúde e crise demográfica na Rússia), deu à Folha outro tipo de exemplo: nos Estados Unidos, 88% dos adolescentes com 16 anos chegarão aos 60. Na Rússia, apenas 60%.
A Aids é um complicador de peso numa sociedade debilitada pelo alcoolismo e pelo tabagismo. E na qual, diz Feshbach, se fosse para manter a expectativa de vida do final dos anos 80, cerca 6 milhões de russos ainda estariam vivos.
Elena Tamazova, coordenadora, em Moscou, do Unaids, programa da ONU de auxílio na definição de políticas contra a epidemia, não acredita que o problema seja tão irreversível.
Disse à Folha que a notificação de novos casos tende a diminuir. Eles foram 88 mil em 2001, 60 mil no ano seguinte. Não há ainda dados sobre o ano passado.
Há, também, "movimentos positivos" dentro da sociedade, com a implementação de programas e a chegada de recursos externos, como os do Banco Mundial.
Inexiste, porém, um consenso entre os russos de que o seu sistema de saúde "é um desastre", diz Nicholas Eberstadt. "Nenhum partido político colocou a Aids em sua plataforma eleitoral. As autoridades são negligentes." Não se sentem pressionadas.
No Ministério da Saúde, diz Eberstadt, há apenas quatro funcionários encarregados do HIV.
"No ano passado, em São Petersburgo, médicos russos me disseram que um quarto das mulheres atendidas nas policlínicas tinham alguma doença sexualmente transmissível." Eram donas de casa, não prostitutas.
Ele também cita um estudo naquela cidade russa pelo qual um sexto dos candidatos ao curso de medicina tinha alguma moléstia contraída por relações sexuais. Ou seja, um clima amplamente favorável à expansão do HIV.
Há certas particularidades locais no processo de expansão do vírus. Melaine Zipperer, da OMS, disse à Folha que a epidemia se espalhou sobretudo entre jovens usuários de droga, 80% dos casos conhecidos. Criou-se um núcleo rápido de expansão com o binômio prostituição-seringas.
Só em seguida é que passaram a ser notificados casos entre casais heterossexuais oficialmente estabelecidos e bebês nascidos de mães soropositivas.
"Os usuários de drogas e as pessoas que praticam a prostituição têm um acesso muito limitado aos serviços de saúde", disse ela.
Há na Rússia ONGs que se instalam para atender a essa população. Mas, em algumas regiões, elas não são aceitas ou penetram com uma certa dificuldade. Esses obstáculos levam Zipperer a considerar possível a previsão catastrófica de Eberstadt, de que o HIV poderá privar a Rússia de 20 milhões de pessoas de 20 a 30 anos.
O Brasil tem entre 600 mil e 660 mil soropositivos, com uma população 40 milhões maior que a da Rússia. Os russos estão gastando neste ano US$ 38 milhões para combater a epidemia. No Brasil, os gastos públicos- federais e locais- seriam de US$ 1,3 bilhão.
A comparação é feita por Murray Feshbach, por simples efeito didático. Num país a epidemia assusta por sua rápida expansão. No outro, ela já está sob controle.

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