São Paulo, domingo, 10 de novembro de 2002

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OPINIÃO

Ação no Iêmen é o "tiro limpo" de Bush

ROBERT FISK
DO "THE INDEPENDENT"

"Um tiro limpo" foi a revoltante descrição do "Washington Post" para o assassinato dos líderes da Al Qaeda no Iêmen por uma aeronave não-tripulada Predador.
Com aprovação servil, a imprensa dos EUA utilizou a descrição apresentada por Israel para assassinatos como este - "targeted killing" (assassinato seletivo, numa tradução livre). E a BBC deveria se envergonhar de ter imitado essas palavras na quarta-feira.
Que tal um pouco de liberdade jornalística? Como perguntar se os suspeitos não poderiam ter sido presos. Ou julgados num tribunal aberto. Ou, ao menos, ter sido levados à baía de Guantánamo para interrogatório.
Em vez disso, os americanos soltaram um bando de "suspeitos" de Guantánamo. Um dos quais, ficamos sabendo agora -após ele ter ficado 11 meses em confinamento solitário-, tem cerca de cem anos e está tão senil que não é capaz de articular uma frase. Isso é a "guerra ao terror"?
Mas um "tiro limpo" é aparentemente o que o presidente Bush quer conseguir na ONU. Primeiro, forçou-a a adotar uma resolução [aprovada por unanimidade na sexta-feira" sobre a qual o Conselho de Segurança possuía as mais graves reservas.
Depois, ele advertiu que poderia destruir a integridade da ONU ao ignorá-la totalmente. Em outras palavras, ele quer destruir a ONU.
Será que George Bush percebe que os EUA foram os principais criadores dessa instituição, assim como fizeram com a Liga das Nações durante o governo do presidente Woodrow Wilson?
"Assassinato seletivo" -cortesia da administração Bush- é agora o que o premiê israelense, Ariel Sharon, pode chamar de "prática de guerra legítima". E Vladimir Putin também.
Agora os russos estão falando em "assassinatos seletivos" em sua guerra na Tchetchênia. Após o desastroso "resgate" dos reféns do teatro de Moscou, Putin é apoiado por Bush e pelo premiê britânico, Tony Blair, em seu massacre do povo muçulmano da Tchetchênia.
Sou um cético crítico da mídia americana, mas, no mês passado, a revista "Newsweek" publicou uma brilhante reportagem sobre a guerra tchetchena. Num relato profundamente comovente da crueldade russa na Tchetchênia, contou a história de uma operação do Exército russo num desprotegido vilarejo muçulmano.
Soldados russos arrombaram uma casa e atiraram em todos que ali estavam. Uma das vítimas era uma garota tchetchena. Enquanto ela morria em decorrência dos ferimentos, um soldado começou a estuprá-la. "Vai rápido, Kolya", gritou um amigo seu, "enquanto ela ainda está quente".
Tenho, agora, uma questão. Se você ou eu fosse o marido, o amante, o irmão ou o pai daquela garota, não estaríamos preparados para tomar reféns num teatro de Moscou? Mesmo se isso significasse -como significou- que seríamos executados com um tiro na cabeça como foram as sequestradoras tchetchenas?
Mas isso não importa. A "guerra contra o terror" significa que Kolya e os rapazes estarão agindo de novo em breve, cortesia dos senhores Putin, Bush e Blair.
Deixe-me usar as palavras daquele bravo israelense, Mordechai Vanunu, o homem que tentou alertar o Ocidente da enorme tecnologia nuclear de Israel, preso numa solitária por 12 anos. Num poema que escreveu na prisão, Vanunu disse: "Sou o escriturário, o técnico, o mecânico, o motorista. Eles disseram: "Faça isso, não faça aquilo, não olhe para a esquerda nem para a direita, não leia o texto. Não observe a máquina toda. Você só é responsável por esse único parafuso, esse único carimbo'".
Kolya teria entendido isso. Assim como o oficial da Força Aérea dos EUA que "pilotava" a máquina que matou os homens da Al Qaeda no Iêmen. Assim como o piloto israelense que bombardeou um edifício em Gaza, matando nove crianças assim como o seu alvo do Hamas, numa "operação" descrita por Ariel Sharon como "um grande sucesso".
Nos dias de hoje, todos acreditamos em "tiros limpos". Gostaria que Bush pudesse ler a história. Não apenas a história colonial britânica, na qual utilizamos gás contra os curdos do Iraque nos anos 30. Não apenas o apoio de seu próprio país a Saddam Hussein durante a guerra com o Irã. Os iranianos editaram certa vez um livro devastador com fotos coloridas das bolhas dos ferimentos causados pelo gás em seus soldados na guerra. Olhei novamente essas fotos nesta semana. Se vocês fossem esses homens, gostariam de morrer. Todos eles morreram. Gostaria que alguém lembrasse a Bush de Lawrence da Arábia, que dizia que "fazer guerra ou rebelião é complicado como tomar sopa com uma faca".
Espero que não cometamos crimes de guerra no Iraque. Haverá muitos deles para observarmos, mas gostaria de crer que a ONU possa conter George Bush e Vladimir Putin e Tony Blair. Mas uma coisa é certa: Kolya estará com eles.


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