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ARTIGO
O impacto do conflito em Gaza sobre o mundo árabe
A tentativa israelense de infligir aos palestinos o estaticídio sublinha, entre outras coisas, a reconfiguração do poder, da legitimidade e do ativismo no Estado árabe moderno
RAMI G. KHOURI
As consequências imediatas
do ataque israelense a Gaza são
sentidas primeiramente, claro,
pelos palestinos de Gaza. Mas
as ondas de choque políticas serão sentidas em todo o mundo
árabe de formas difíceis de prever. A tentativa israelense de
infligir a Gaza o estaticídio sublinha uma série de tendências
transformacionais da região
nos últimos 25 anos.
A mais importante diz respeito à reconfiguração do poder, da legitimidade e do ativismo no Estado árabe moderno.
À medida que os governos dos
Estados árabes existentes continuarem a ignorar o que ocorre em Gaza -como fazem na
prática, a julgar por sua imobilidade política-, vamos continuar a testemunhar o enfraquecimento do impacto, do
controle e até mesmo da legitimidade de muitos desses regimes. Também vamos continuar a testemunhar a ascensão
de atores não estatais que se
tornam tão fortes e dignos de
crédito que deveriam ser descritos como Estados paralelos.
As manifestações de rua promovidas por árabes enfurecidos já deixaram de ter significado político, pois o medo, a ira e
o desejo de ação de homens e
mulheres comuns em todo o
Oriente Médio vêm sendo mobilizados por uma combinação
de movimentos islâmicos e tribais que hoje formam o centro
de gravidade da identidade política árabe -nos espaços crescentes não dominados pelo Estado policial árabe moderno.
Hizbollah, Hamas, a Irmandade Muçulmana, o movimento de Muqtada al Sadr no Iraque e outros são alguns dos
principais exemplos desse fenômeno. O Hamas, em Gaza, é
provavelmente o mais significativo, pois é uma parte grande
do conflito fundamental palestino-israelense que se expandiu num conflito árabe-israelense maior. É uma paisagem
sagrada que incorpora Jerusalém e que é sagrada a todos os
muçulmanos e árabes, inclusive cristãos. E, nos últimos dois
anos, é o único ponto na história do conflito em que os palestinos tiveram uma chance breve de estabelecer um mini-Estado soberano -com suas instituições e operações de segurança próprias, em grande medida
livre de ataques e controles israelenses diretos ou de empecilhos postos por outros árabes.
As próximas semanas vão revelar o que está acontecendo
nas batalhas em Gaza e nas ramificações políticas a seguir. O
que já está claro, porém, é que
Gaza representa a primeira vez
na história que palestinos que
controlavam sua própria sociedade decidem tomar posição
contra as tentativas de Israel de
matar, ocupar, privar de alimentos, prender e destruí-los
como sociedade coerente.
O quadro não é bonito, sob
qualquer dimensão:
* as lutas internas entre palestinos do Fatah e do Hamas;
* ataques mútuos entre Hamas, outros palestinos e Israel;
* a insolubilidade das negociações israelenses com a Autoridade Nacional Palestina encabeçada por Mahmoud Abbas;
* a estarrecedora imobilidade dos governos árabes; e
* a desatenção cúmplice do
mundo à tentativa israelense
de estrangular a população de
Gaza e matá-la de fome desde
que o Hamas venceu as eleições
parlamentares, em 2006.
A maior parte disso tudo não
é novidade. O único fenômeno
realmente novo hoje é que vários milhares de palestinos armados e treinados, sob o comando do Hamas e de alguns
grupos de resistência menores,
assumiram uma posição defensiva em sua terra natal.
Eles
mostraram que estão dispostos
a lutar até a morte para se defender contra o poderio de Israel e o apoio dos EUA a Israel.
O ataque contínuo que Israel
vem lançando contra a população e a terra palestinas há 60
anos e que só vem se intensificando já extrapolou tantos limites que finalmente vem começando a suscitar reações de
muitos setores do mundo árabe
que se recusam a aceitar sua
própria humilhação, colonização, marginalização ou, no pior
caso, como na faixa de Gaza hoje, seu próprio extermínio.
A maioria da população árabe e outras pelo mundo se solidariza com o Hamas e os palestinos. Mas é impotente para fazer qualquer coisa senão protestar nas ruas. A maioria dos
governos árabes e estrangeiros
teme movimentos como o Hamas, que mobilizam massas de
cidadãos, tomam as rédeas de
seu destino e abertamente resistem e confrontam as estruturas de poder respaldadas pelos EUA que os cercam.
A maneira como esta guerra
vai terminar terá um impacto
enorme sobre as tendências na
região. Se o Hamas emergir em
pé, com um cessar-fogo internacionalmente monitorado
que suspenda os ataques de
ambos os lados e reabra as fronteiras de Gaza, isso será visto
como vitória. Também reforçará a popularidade do modelo
Hizbollah-Hamas de resistência armada, predicada na disposição e capacidade de combater
um inimigo mais forte.
Historicamente, Israel nunca conseguiu aceitar o nacionalismo palestino. Nunca viu os
palestinos como pessoas que
devem desfrutar da mesma
qualidade de vida e dos mesmos direitos nacionais que judeus, sionistas e israelenses.
Gaza é o primeiro grupo de
palestinos assertivos operando
em solo palestino. Esses palestinos suscitaram uma tentativa
de estaticídio por parte de Israel e, ao mesmo tempo, um
apoio popular amplo em toda a
região árabe. Essas duas tendências vão reforçar os movimentos islâmico-nacionalistas
e degradar ainda mais algumas
estruturas de Estado árabes.
RAMI G. KHOURI é editor-geral do "The Daily
Star" e diretor do Instituto Issam Fares de Política Pública e Assuntos Internacionais, na Universidade Americana de Beirute, no Líbano. Este
artigo foi distribuído pela Agence Global.
Tradução de CLARA ALLAIN
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