São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2009

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ARTIGO

O impacto do conflito em Gaza sobre o mundo árabe

A tentativa israelense de infligir aos palestinos o estaticídio sublinha, entre outras coisas, a reconfiguração do poder, da legitimidade e do ativismo no Estado árabe moderno

RAMI G. KHOURI

As consequências imediatas do ataque israelense a Gaza são sentidas primeiramente, claro, pelos palestinos de Gaza. Mas as ondas de choque políticas serão sentidas em todo o mundo árabe de formas difíceis de prever. A tentativa israelense de infligir a Gaza o estaticídio sublinha uma série de tendências transformacionais da região nos últimos 25 anos. A mais importante diz respeito à reconfiguração do poder, da legitimidade e do ativismo no Estado árabe moderno.
À medida que os governos dos Estados árabes existentes continuarem a ignorar o que ocorre em Gaza -como fazem na prática, a julgar por sua imobilidade política-, vamos continuar a testemunhar o enfraquecimento do impacto, do controle e até mesmo da legitimidade de muitos desses regimes. Também vamos continuar a testemunhar a ascensão de atores não estatais que se tornam tão fortes e dignos de crédito que deveriam ser descritos como Estados paralelos. As manifestações de rua promovidas por árabes enfurecidos já deixaram de ter significado político, pois o medo, a ira e o desejo de ação de homens e mulheres comuns em todo o Oriente Médio vêm sendo mobilizados por uma combinação de movimentos islâmicos e tribais que hoje formam o centro de gravidade da identidade política árabe -nos espaços crescentes não dominados pelo Estado policial árabe moderno.
Hizbollah, Hamas, a Irmandade Muçulmana, o movimento de Muqtada al Sadr no Iraque e outros são alguns dos principais exemplos desse fenômeno. O Hamas, em Gaza, é provavelmente o mais significativo, pois é uma parte grande do conflito fundamental palestino-israelense que se expandiu num conflito árabe-israelense maior. É uma paisagem sagrada que incorpora Jerusalém e que é sagrada a todos os muçulmanos e árabes, inclusive cristãos. E, nos últimos dois anos, é o único ponto na história do conflito em que os palestinos tiveram uma chance breve de estabelecer um mini-Estado soberano -com suas instituições e operações de segurança próprias, em grande medida livre de ataques e controles israelenses diretos ou de empecilhos postos por outros árabes.
As próximas semanas vão revelar o que está acontecendo nas batalhas em Gaza e nas ramificações políticas a seguir. O que já está claro, porém, é que Gaza representa a primeira vez na história que palestinos que controlavam sua própria sociedade decidem tomar posição contra as tentativas de Israel de matar, ocupar, privar de alimentos, prender e destruí-los como sociedade coerente.
O quadro não é bonito, sob qualquer dimensão:
* as lutas internas entre palestinos do Fatah e do Hamas;
* ataques mútuos entre Hamas, outros palestinos e Israel;
* a insolubilidade das negociações israelenses com a Autoridade Nacional Palestina encabeçada por Mahmoud Abbas;
* a estarrecedora imobilidade dos governos árabes; e
* a desatenção cúmplice do mundo à tentativa israelense de estrangular a população de Gaza e matá-la de fome desde que o Hamas venceu as eleições parlamentares, em 2006.
A maior parte disso tudo não é novidade. O único fenômeno realmente novo hoje é que vários milhares de palestinos armados e treinados, sob o comando do Hamas e de alguns grupos de resistência menores, assumiram uma posição defensiva em sua terra natal.
Eles mostraram que estão dispostos a lutar até a morte para se defender contra o poderio de Israel e o apoio dos EUA a Israel. O ataque contínuo que Israel vem lançando contra a população e a terra palestinas há 60 anos e que só vem se intensificando já extrapolou tantos limites que finalmente vem começando a suscitar reações de muitos setores do mundo árabe que se recusam a aceitar sua própria humilhação, colonização, marginalização ou, no pior caso, como na faixa de Gaza hoje, seu próprio extermínio.
A maioria da população árabe e outras pelo mundo se solidariza com o Hamas e os palestinos. Mas é impotente para fazer qualquer coisa senão protestar nas ruas. A maioria dos governos árabes e estrangeiros teme movimentos como o Hamas, que mobilizam massas de cidadãos, tomam as rédeas de seu destino e abertamente resistem e confrontam as estruturas de poder respaldadas pelos EUA que os cercam.
A maneira como esta guerra vai terminar terá um impacto enorme sobre as tendências na região. Se o Hamas emergir em pé, com um cessar-fogo internacionalmente monitorado que suspenda os ataques de ambos os lados e reabra as fronteiras de Gaza, isso será visto como vitória. Também reforçará a popularidade do modelo Hizbollah-Hamas de resistência armada, predicada na disposição e capacidade de combater um inimigo mais forte.
Historicamente, Israel nunca conseguiu aceitar o nacionalismo palestino. Nunca viu os palestinos como pessoas que devem desfrutar da mesma qualidade de vida e dos mesmos direitos nacionais que judeus, sionistas e israelenses. Gaza é o primeiro grupo de palestinos assertivos operando em solo palestino. Esses palestinos suscitaram uma tentativa de estaticídio por parte de Israel e, ao mesmo tempo, um apoio popular amplo em toda a região árabe. Essas duas tendências vão reforçar os movimentos islâmico-nacionalistas e degradar ainda mais algumas estruturas de Estado árabes.

RAMI G. KHOURI é editor-geral do "The Daily Star" e diretor do Instituto Issam Fares de Política Pública e Assuntos Internacionais, na Universidade Americana de Beirute, no Líbano. Este artigo foi distribuído pela Agence Global.

Tradução de CLARA ALLAIN



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