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Aos 60, Israel debate caráter do Estado
Aos poucos, país troca discussão sobre segurança que dominou primeiras décadas por questionamento sobre sua natureza
Conflito ainda é tema maior, mas, para especialistas, são manutenção da democracia e os dilemas internos que nortearão futuro israelense
MARCELO NINIO
ENVIADO ESPECIAL A JERUSALÉM
O futuro ainda é incerto, as
fronteiras estão longe de ser
definidas e a maioria dos vizinhos não aceita sua existência.
Mas ao completar 60 anos de
independência, Israel trocou o
medo da aniquilação iminente,
que dominou boa parte de suas
primeiras décadas, pelo debate
sobre o caráter do Estado nos
próximos anos no topo de suas
preocupações.
A velha crise existencial persiste, diz o historiador e jornalista Tom Segev, mas a pergunta mudou: não é mais "se" o Estado existirá, mas "como". Israel tem o Exército mais poderoso da região, onde é o único
país com capacidade nuclear, e
ainda conta com o apoio incondicional dos Estados Unidos.
Mas se a ameaça externa já não
é tão imediata, os demônios internos continuam a assustar.
"O que está em perigo não é a
existência, mas a democracia",
resume Segev, tendo em mente
a ocupação dos territórios palestinos. Para ele, os palestinos
não colocam em risco o futuro
de Israel, mesmo com o grupo
fundamentalista Hamas no
controle da faixa de Gaza. Mas a
ocupação distorce o caráter democrático do Estado. "Não é
possível dominar um outro povo durante 40 anos sem sofrer
seqüelas", diz Segev.
Embora o conflito com os palestinos (e os árabes em geral)
ainda seja um assunto dominante em Israel, as desilusões
dos últimos anos parecem ter
levado o país a uma espécie de
conformismo de que é preciso
seguir em frente enquanto a
paz permanece congelada.
"Não é uma situação estável,
mas aprendemos que é preciso
desenvolver a economia, a
ciência, a sociedade, enquanto
uma solução para o conflito não
vem", diz o cientista político
Yehezkel Dror, que tem longa
experiência em assessorar governos israelenses em crises.
Dror lembra que Israel tem
um acordo de paz com o Egito,
um dos principais países do
mundo árabe, e com a Jordânia,
o que também é importante para garantir a tranqüilidade na
frente oriental. Com a Síria não
há paz, mas um "modus vivendi" que dura 40 anos sem grandes sobressaltos, acrescenta.
"É claro que tudo isso pode
mudar se houver uma nuclearização do Oriente Médio", diz
Dror, citando as pretensões do
Irã nessa área. "No momento,
não precisamos perder o sono,
mas também não dá para dormir muito tranqüilo."
Dilemas domésticos
Num país marcado pela guerra, as preocupações externas se
confundem com os dilemas domésticos. Em primeiro lugar há
o fantasma da demografia. Com
as altas taxas de natalidade da
população árabe, a estimativa é
de que até 2020 os judeus sejam minoria na faixa de terra
do rio Jordão ao mar Mediterrâneo, que era o território controlado por Israel até a retirada
da faixa de Gaza, em 2005.
A previsão é do demógrafo
Sérgio DellaPergola, para quem
só é possível manter um Estado
judeu e democrático com uma
solução para a ocupação da Cisjordânia, onde vivem 2 milhões
de palestinos. "Em pouco mais
de dez anos os judeus poderão
ser a minoria no poder, o que é
antidemocrático", diz DellaPergola, levando em conta que
Israel, apesar da saída de Gaza,
ainda controla o território.
O demógrafo lembra que as
divisões internas também lançam sombra sobre o futuro do
país. Entre elas, o distanciamento entre religiosos e laicos
e de suas visões do caráter que
deve ter o Estado judeu. "Este é
um dos principais desafios de
Israel nos próximos anos", diz.
Nada ilustra melhor essas diferenças do que as duas principais cidades do país, que parecem bem mais distantes que os
60 km que as separam. Enquanto Jerusalém se torna cada vez mais religiosa e nacionalista, a cosmopolita Tel Aviv se
afasta da política e cultua o hedonismo e o sucesso pessoal.
Até a geografia ressalta os contrastes: Jerusalém na introspecção da montanha, Tel Aviv
na extroversão do litoral.
Aqueles que se tornaram minoria tentam se adaptar às mudanças. Dona de uma loja de
moda feminina no centro de
Jerusalém, Aviva Levy, 52, diz
que já pensa em mudar sua próxima coleção para atender ao
número cada vez maior de
clientes judias ortodoxas. E não
se trata apenas de saias mais
longas e golas mais altas.
"Até os manequins nas vitrines se tornaram mais comedidas, menos sensuais", diz.
A maioria laica da população
israelense se irrita com o monopólio rabínico sobre assuntos que, para eles, deveriam ser
da esfera civil, como casamentos, divórcios e sepultamentos.
Muitos afirmam que essa interferência é uma ameaça ao caráter democrático do Estado.
Dror acha que é cedo para tirar conclusões. "Sessenta anos
não são nada em termos históricos", diz o veterano especialista. "Um Estado judeu e democrático no Oriente Médio é
um projeto tão ambicioso que é
preciso esperar pelo menos outros 60 anos para saber que tipo
de sociedade se formará aqui."
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