São Paulo, domingo, 11 de maio de 2008

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Aos 60, Israel debate caráter do Estado

Aos poucos, país troca discussão sobre segurança que dominou primeiras décadas por questionamento sobre sua natureza

Conflito ainda é tema maior, mas, para especialistas, são manutenção da democracia e os dilemas internos que nortearão futuro israelense


MARCELO NINIO
ENVIADO ESPECIAL A JERUSALÉM

O futuro ainda é incerto, as fronteiras estão longe de ser definidas e a maioria dos vizinhos não aceita sua existência. Mas ao completar 60 anos de independência, Israel trocou o medo da aniquilação iminente, que dominou boa parte de suas primeiras décadas, pelo debate sobre o caráter do Estado nos próximos anos no topo de suas preocupações.
A velha crise existencial persiste, diz o historiador e jornalista Tom Segev, mas a pergunta mudou: não é mais "se" o Estado existirá, mas "como". Israel tem o Exército mais poderoso da região, onde é o único país com capacidade nuclear, e ainda conta com o apoio incondicional dos Estados Unidos. Mas se a ameaça externa já não é tão imediata, os demônios internos continuam a assustar.
"O que está em perigo não é a existência, mas a democracia", resume Segev, tendo em mente a ocupação dos territórios palestinos. Para ele, os palestinos não colocam em risco o futuro de Israel, mesmo com o grupo fundamentalista Hamas no controle da faixa de Gaza. Mas a ocupação distorce o caráter democrático do Estado. "Não é possível dominar um outro povo durante 40 anos sem sofrer seqüelas", diz Segev.
Embora o conflito com os palestinos (e os árabes em geral) ainda seja um assunto dominante em Israel, as desilusões dos últimos anos parecem ter levado o país a uma espécie de conformismo de que é preciso seguir em frente enquanto a paz permanece congelada.
"Não é uma situação estável, mas aprendemos que é preciso desenvolver a economia, a ciência, a sociedade, enquanto uma solução para o conflito não vem", diz o cientista político Yehezkel Dror, que tem longa experiência em assessorar governos israelenses em crises.
Dror lembra que Israel tem um acordo de paz com o Egito, um dos principais países do mundo árabe, e com a Jordânia, o que também é importante para garantir a tranqüilidade na frente oriental. Com a Síria não há paz, mas um "modus vivendi" que dura 40 anos sem grandes sobressaltos, acrescenta.
"É claro que tudo isso pode mudar se houver uma nuclearização do Oriente Médio", diz Dror, citando as pretensões do Irã nessa área. "No momento, não precisamos perder o sono, mas também não dá para dormir muito tranqüilo."

Dilemas domésticos
Num país marcado pela guerra, as preocupações externas se confundem com os dilemas domésticos. Em primeiro lugar há o fantasma da demografia. Com as altas taxas de natalidade da população árabe, a estimativa é de que até 2020 os judeus sejam minoria na faixa de terra do rio Jordão ao mar Mediterrâneo, que era o território controlado por Israel até a retirada da faixa de Gaza, em 2005.
A previsão é do demógrafo Sérgio DellaPergola, para quem só é possível manter um Estado judeu e democrático com uma solução para a ocupação da Cisjordânia, onde vivem 2 milhões de palestinos. "Em pouco mais de dez anos os judeus poderão ser a minoria no poder, o que é antidemocrático", diz DellaPergola, levando em conta que Israel, apesar da saída de Gaza, ainda controla o território.
O demógrafo lembra que as divisões internas também lançam sombra sobre o futuro do país. Entre elas, o distanciamento entre religiosos e laicos e de suas visões do caráter que deve ter o Estado judeu. "Este é um dos principais desafios de Israel nos próximos anos", diz.
Nada ilustra melhor essas diferenças do que as duas principais cidades do país, que parecem bem mais distantes que os 60 km que as separam. Enquanto Jerusalém se torna cada vez mais religiosa e nacionalista, a cosmopolita Tel Aviv se afasta da política e cultua o hedonismo e o sucesso pessoal. Até a geografia ressalta os contrastes: Jerusalém na introspecção da montanha, Tel Aviv na extroversão do litoral.
Aqueles que se tornaram minoria tentam se adaptar às mudanças. Dona de uma loja de moda feminina no centro de Jerusalém, Aviva Levy, 52, diz que já pensa em mudar sua próxima coleção para atender ao número cada vez maior de clientes judias ortodoxas. E não se trata apenas de saias mais longas e golas mais altas.
"Até os manequins nas vitrines se tornaram mais comedidas, menos sensuais", diz.
A maioria laica da população israelense se irrita com o monopólio rabínico sobre assuntos que, para eles, deveriam ser da esfera civil, como casamentos, divórcios e sepultamentos. Muitos afirmam que essa interferência é uma ameaça ao caráter democrático do Estado.
Dror acha que é cedo para tirar conclusões. "Sessenta anos não são nada em termos históricos", diz o veterano especialista. "Um Estado judeu e democrático no Oriente Médio é um projeto tão ambicioso que é preciso esperar pelo menos outros 60 anos para saber que tipo de sociedade se formará aqui."


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