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ENTREVISTA/TONY SMITH
Para pesquisador de Harvard, estudos de acadêmicos próximos a Partido Democrata forneceram arsenal teórico a neoconservadores
Doutrina Bush bebeu na fonte liberal, diz professor
EM ARTIGO publicado pela Folha no mês
passado, Robert Kagan apontou a China
e a Rússia como agentes de "um conflito
renovado entre o liberalismo e a autocracia". Kagan, um neoconservador, referia-se indiretamente ao conceito da zona de paz democrática,
retomado nos anos 90 a partir da filosofia de Kant
(1724-1804) por acadêmicos que nada tinham a ver
com os arquitetos da Doutrina Bush. A maioria desses acadêmicos era ligada à tradição "liberal internacionalista", influente no Partido Democrata desde o governo de Woodrow Wilson (1913-1921).
CLAUDIA ANTUNES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE
CAMBRIDGE (EUA)
Para esses acadêmicos, a sobrevivência, no período pós-Guerra Fria, das alianças estratégicas criadas pelos EUA depois de 1945 provou que democracias liberais tendem a não
guerrear entre si. Os liberais internacionalistas enfatizam a
disseminação dos "valores
americanos" por meio de instituições multilaterais e pactos
de segurança.
A retórica de espalhar a democracia nunca foi monopólio
democrata, mas o governo
Bush repatenteou a idéia, ligou-a à "guerra ao terror" e descartou a deferência ao multilateralismo. Quando nem a ONU
nem a Otan seguiram os EUA
na invasão do Iraque, muitos
"neowilsonianos" silenciaram
ou apoiaram Bush, acreditando
que, a longo prazo, os benefícios da ampliação da "zona de
paz" teriam maior peso.
Esse é, em resumo, o argumento do sexto livro de Tony
Smith, professor titular da Universidade Tufts e pesquisador
há 26 anos do Centro de Estudos Europeus da Universidade
Harvard. Embora se defina como um liberal, Smith prevê a
volta do realismo à política externa dos EUA. Na entrevista a
seguir, ele fala sobre o livro "A
Pact with the Devil" (um pacto
com o diabo), que será lançado
pela editora Taylor Francis.
FOLHA - O que o levou a investigar
a relação entre os neoconservadores
e as teorias dos chamados liberais
internacionalistas?
TONY SMITH - Tudo o que está na
Doutrina Bush -guerra preventiva, disseminação de "um
só modelo sustentável para o
sucesso das nações", supremacia militar- havia sido escrito
pelos neoconservadores na revista "Weekly Standard", que
começou em 1995, e no Projeto
para o Novo Século Americano,
de 1997. Os neoconservadores
expressam antigas tradições
americanas, como o cristianismo missionário e a idéia kantiana de que a razão leva à paz
universal. O problema é que
eles conhecem pouco dessas
tradições. Porém, há um outro
grupo que as conhece bem, os
neowilsonianos. Eles não são
republicanos, não conheço um
que tenha votado em Bush.
Mas nos anos 90 lançaram
idéias que os levaram a convergir com os neoconservadores a
partir de 2001. Alguns não
apoiaram a invasão do Iraque,
mas suas idéias foram usadas.
FOLHA - Há diferenças entre os
dois grupos?
SMITH - Os neowilsonianos são
multilateralistas. Falam na
ONU e na Otan como aliados. A
maioria se opôs à saída americana do Tratado de Mísseis Antibalísticos, em 2002. Em relação a Israel, tendem a ser mais
críticos. Mas as diferenças não
impediram muitos deles de dar
sugestões para a guerra.
FOLHA - O sr. se refere a pessoas como Michael Ignatieff (ex-coordenador do programa de direitos humanos de Harvard que apoiou a invasão do Iraque)?
SMITH - É um exemplo. Quando os neowilsonianos falam de
promoção da democracia e mudança de regime, a meta não é
só recriar o Estado mas a sociedade, a economia, a cultura, a
família. É megalomania, uma
ilusão de onipotência. O esforço de fora para recriar o mundo
muçulmano tem gerado mais
sofrimento do que bem-estar.
FOLHA - O senhor pode traçar a origem das idéias que alimentaram o
pensamento neoconservador?
SMITH - A teoria da paz democrática é a mais importante.
Nos anos 80, Michael Doyle, de
Princeton, fez um teste empírico das idéias de Kant e concluiu
que não havia evidências de
que democracias são mais pacíficas. Nos anos 90, outros pesquisadores demonstraram que
havia uma zona de paz democrática. A principal prova era a
integração européia, mas também eram citados a Otan e o
Mercosul. O conceito se tornou
tão poderoso que professores
foram nomeados, financiamentos de projetos apareceram. O foco do estudo das relações internacionais nos EUA
passou do realismo, que enfoca
o equilíbrio de poder entre Estados, ao liberalismo, que enfatiza o impacto da natureza dos
Estados. Alguns expoentes desse pensamento são Bruce Russett, de Yale, Andrew Moravcsik, de Princeton, e o filósofo liberal John Rawls com o seu livro "O Direito dos Povos".
FOLHA - Mas a idéia deles não era
impor a democracia à força.
SMITH - Não. Kant, como se sabe, condenava as guerras ofensivas. Porém, surgiu o impasse
sobre o que fazer com países
que resistiam à democracia.
Uma solução foi assimilá-los,
com a expansão da União Européia, da Otan, para ampliar a
zona de paz democrática. Para
alguns, os países que resistissem à assimilação deveriam ser
deixados para trás. O problema
é que havia países como a China ou a Rússia ou regiões, como
o Oriente Médio, que não podem ser ignorados. O que acontece se o mundo de [Thomas]
Hobbes [1588-1679], o estado
da natureza anárquico, atacar o
mundo de Kant? Os neoconservadores tinham a resposta: você derrota esse mundo numa
guerra e o converte às idéias
kantianas. Em vez de formar
um pólo antiguerra, os neowilsonianos se dividiram e isso é
uma das causas de não haver
um movimento forte contra a
guerra nos EUA.
FOLHA - Qual a sua análise da teoria da zona de paz democrática?
SMITH - Um dos problemas é
que ela subestima a necessidade de uma liderança hegemônica para a existência de uma zona de paz democrática. É preciso um líder capaz de disciplinar
os países dentro da região e
manter os inimigos afastados.
FOLHA - Como duas outras idéias
importantes, a de intervenção humanitária e a do apelo universal da
democracia entram nessa equação?
SMITH - O apelo universal da
democracia veio da política
comparada. Começaram a fazer pesquisas e descobriram
que no mundo todo as pessoas
queriam democracia. Ao mesmo tempo, um grupo que começou na França com Bernard
Kouchner argumentou que a
única soberania legítima é a democrática. No topo de tudo, temos que qualquer país não-democrático com armas de destruição em massa é como um
violador contumaz dos direitos
humanos e pode ser atacado
quando o mundo kantiano decidir. Os neowilsonianos disseram torcer para que o Conselho
de Segurança tomasse essa iniciativa. No caso de Kosovo, eles
se voltaram para a Otan. Quando a Otan não agiu, muitos se
tornaram unilateralistas.
FOLHA - Estamos assistindo ao retorno dos realistas nas relações internacionais?
SMITH - Certamente. Eu espero ver os realistas de volta. Mas
há um longo caminho. Se houver um novo atentado terrorista, existe aqui um movimento
jihadista que quer uma guerra
santa em nome da democracia
e voltará a ocupar o centro do
debate. Alguns neoconservadores já estão furiosos porque
acham que o Irã não vai ser atacado. Estão contemplando denunciar o governo Bush em nome da Doutrina Bush.
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