São Paulo, domingo, 11 de junho de 2006

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ENTREVISTA/TONY SMITH

Para pesquisador de Harvard, estudos de acadêmicos próximos a Partido Democrata forneceram arsenal teórico a neoconservadores

Doutrina Bush bebeu na fonte liberal, diz professor

EM ARTIGO publicado pela Folha no mês passado, Robert Kagan apontou a China e a Rússia como agentes de "um conflito renovado entre o liberalismo e a autocracia". Kagan, um neoconservador, referia-se indiretamente ao conceito da zona de paz democrática, retomado nos anos 90 a partir da filosofia de Kant (1724-1804) por acadêmicos que nada tinham a ver com os arquitetos da Doutrina Bush. A maioria desses acadêmicos era ligada à tradição "liberal internacionalista", influente no Partido Democrata desde o governo de Woodrow Wilson (1913-1921).

CLAUDIA ANTUNES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE CAMBRIDGE (EUA)

Para esses acadêmicos, a sobrevivência, no período pós-Guerra Fria, das alianças estratégicas criadas pelos EUA depois de 1945 provou que democracias liberais tendem a não guerrear entre si. Os liberais internacionalistas enfatizam a disseminação dos "valores americanos" por meio de instituições multilaterais e pactos de segurança. A retórica de espalhar a democracia nunca foi monopólio democrata, mas o governo Bush repatenteou a idéia, ligou-a à "guerra ao terror" e descartou a deferência ao multilateralismo. Quando nem a ONU nem a Otan seguiram os EUA na invasão do Iraque, muitos "neowilsonianos" silenciaram ou apoiaram Bush, acreditando que, a longo prazo, os benefícios da ampliação da "zona de paz" teriam maior peso. Esse é, em resumo, o argumento do sexto livro de Tony Smith, professor titular da Universidade Tufts e pesquisador há 26 anos do Centro de Estudos Europeus da Universidade Harvard. Embora se defina como um liberal, Smith prevê a volta do realismo à política externa dos EUA. Na entrevista a seguir, ele fala sobre o livro "A Pact with the Devil" (um pacto com o diabo), que será lançado pela editora Taylor Francis.  

FOLHA - O que o levou a investigar a relação entre os neoconservadores e as teorias dos chamados liberais internacionalistas?
TONY SMITH
- Tudo o que está na Doutrina Bush -guerra preventiva, disseminação de "um só modelo sustentável para o sucesso das nações", supremacia militar- havia sido escrito pelos neoconservadores na revista "Weekly Standard", que começou em 1995, e no Projeto para o Novo Século Americano, de 1997. Os neoconservadores expressam antigas tradições americanas, como o cristianismo missionário e a idéia kantiana de que a razão leva à paz universal. O problema é que eles conhecem pouco dessas tradições. Porém, há um outro grupo que as conhece bem, os neowilsonianos. Eles não são republicanos, não conheço um que tenha votado em Bush. Mas nos anos 90 lançaram idéias que os levaram a convergir com os neoconservadores a partir de 2001. Alguns não apoiaram a invasão do Iraque, mas suas idéias foram usadas.

FOLHA - Há diferenças entre os dois grupos?
SMITH
- Os neowilsonianos são multilateralistas. Falam na ONU e na Otan como aliados. A maioria se opôs à saída americana do Tratado de Mísseis Antibalísticos, em 2002. Em relação a Israel, tendem a ser mais críticos. Mas as diferenças não impediram muitos deles de dar sugestões para a guerra.

FOLHA - O sr. se refere a pessoas como Michael Ignatieff (ex-coordenador do programa de direitos humanos de Harvard que apoiou a invasão do Iraque)?
SMITH
- É um exemplo. Quando os neowilsonianos falam de promoção da democracia e mudança de regime, a meta não é só recriar o Estado mas a sociedade, a economia, a cultura, a família. É megalomania, uma ilusão de onipotência. O esforço de fora para recriar o mundo muçulmano tem gerado mais sofrimento do que bem-estar.

FOLHA - O senhor pode traçar a origem das idéias que alimentaram o pensamento neoconservador?
SMITH
- A teoria da paz democrática é a mais importante. Nos anos 80, Michael Doyle, de Princeton, fez um teste empírico das idéias de Kant e concluiu que não havia evidências de que democracias são mais pacíficas. Nos anos 90, outros pesquisadores demonstraram que havia uma zona de paz democrática. A principal prova era a integração européia, mas também eram citados a Otan e o Mercosul. O conceito se tornou tão poderoso que professores foram nomeados, financiamentos de projetos apareceram. O foco do estudo das relações internacionais nos EUA passou do realismo, que enfoca o equilíbrio de poder entre Estados, ao liberalismo, que enfatiza o impacto da natureza dos Estados. Alguns expoentes desse pensamento são Bruce Russett, de Yale, Andrew Moravcsik, de Princeton, e o filósofo liberal John Rawls com o seu livro "O Direito dos Povos".

FOLHA - Mas a idéia deles não era impor a democracia à força.
SMITH
- Não. Kant, como se sabe, condenava as guerras ofensivas. Porém, surgiu o impasse sobre o que fazer com países que resistiam à democracia. Uma solução foi assimilá-los, com a expansão da União Européia, da Otan, para ampliar a zona de paz democrática. Para alguns, os países que resistissem à assimilação deveriam ser deixados para trás. O problema é que havia países como a China ou a Rússia ou regiões, como o Oriente Médio, que não podem ser ignorados. O que acontece se o mundo de [Thomas] Hobbes [1588-1679], o estado da natureza anárquico, atacar o mundo de Kant? Os neoconservadores tinham a resposta: você derrota esse mundo numa guerra e o converte às idéias kantianas. Em vez de formar um pólo antiguerra, os neowilsonianos se dividiram e isso é uma das causas de não haver um movimento forte contra a guerra nos EUA.

FOLHA - Qual a sua análise da teoria da zona de paz democrática?
SMITH
- Um dos problemas é que ela subestima a necessidade de uma liderança hegemônica para a existência de uma zona de paz democrática. É preciso um líder capaz de disciplinar os países dentro da região e manter os inimigos afastados.

FOLHA - Como duas outras idéias importantes, a de intervenção humanitária e a do apelo universal da democracia entram nessa equação?
SMITH
- O apelo universal da democracia veio da política comparada. Começaram a fazer pesquisas e descobriram que no mundo todo as pessoas queriam democracia. Ao mesmo tempo, um grupo que começou na França com Bernard Kouchner argumentou que a única soberania legítima é a democrática. No topo de tudo, temos que qualquer país não-democrático com armas de destruição em massa é como um violador contumaz dos direitos humanos e pode ser atacado quando o mundo kantiano decidir. Os neowilsonianos disseram torcer para que o Conselho de Segurança tomasse essa iniciativa. No caso de Kosovo, eles se voltaram para a Otan. Quando a Otan não agiu, muitos se tornaram unilateralistas.

FOLHA - Estamos assistindo ao retorno dos realistas nas relações internacionais?
SMITH
- Certamente. Eu espero ver os realistas de volta. Mas há um longo caminho. Se houver um novo atentado terrorista, existe aqui um movimento jihadista que quer uma guerra santa em nome da democracia e voltará a ocupar o centro do debate. Alguns neoconservadores já estão furiosos porque acham que o Irã não vai ser atacado. Estão contemplando denunciar o governo Bush em nome da Doutrina Bush.


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