São Paulo, quarta-feira, 11 de agosto de 2010

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MINHA HISTÓRIA JOEL DECKARD, 68

De legislador a fora da lei

Perguntaram se estaríamos interessados em levar pessoas para Toronto. O único problema é que seriam ilegais Meu senso moral indicava que ajudar imigrantes era mais importante que obedecer a lei

RESUMO

Em 1982, um acidente mal explicado três semanas antes da eleição acabou com a carreira política de Joel Deckard, ex-legislador do Estado americano de Indiana.
Mais de 20 anos depois, chefiando uma empresa de transportes, foi abordado por um brasileiro com uma proposta: enfrentar a imigração na fronteira dos EUA com o Canadá para traficar imigrantes.
Deckard agora quer publicar o livro de memórias "The Naked Diaries of an Unlikely Coyote" (os diários Completos de um coiote improvável).

ANDREA MURTA
DE WASHINGTON

Em 2006, me aposentei pelo Citibank e fundei uma pequena empresa de transporte de pessoal em Jacksonville (Flórida). Oferecíamos transporte local e viagens mais longas para a costa.
Um amigo brasileiro chamado Adriano começou a distribuir panfletos da empresa para outros brasileiros. Em poucas semanas, recebemos a ligação de um conhecido dele em Myrtle Beach perguntando se estaríamos interessados em levar pessoas para Toronto.
O único problema é que as pessoas seriam ilegais.
Eu já tivera muito contato com brasileiros ilegais, ajudando-os a preencher formulários e intermediando negociações com empregadores abusivos. Então não precisei pensar muito a respeito. Aceitei na hora.
Não havia feito nada ilegal antes, mas meu senso moral pessoal indicava que ajudar imigrantes sem questionar seu status legal era mais importante que obedecer a lei.

VIAGEM IMPROVISADA
Começamos em 1º de dezembro de 2007. Nunca havia feito nada parecido, então a primeira viagem foi bastante improvisada. Levamos duas semanas estudando mapas da região e decidimos partir de um ponto ao sul da fronteira com o Canadá.
Lá, dávamos instruções aos ilegais sobre o caminho que teriam que fazer a pé. Eles iam pela floresta.
Da primeira vez, foram quatro homens jovens. Levaram quatro horas até nos reencontrar do lado canadense. Isso em temperaturas negativas e sob muita neve.
A partir daí, reformulamos a rota. Para as últimas viagens, descobrimos uma trilha que passava por uma ponte sobre um rio. Só andavam cerca de cem metros até chegar em um local seguro no Canadá.

TRAVESSIA GELADA
Os clientes eram na maioria homens jovens. Só na sexta viagem levei uma família, com pai, mãe, um garoto de 11 anos e um tio. O pai, por algum motivo, se perdeu na trilha. Entrou em pânico e resolveu atravessar o rio nadando, com o garoto nos ombros, no meio do inverno.
O abrigo onde tinham de me esperar não tinha aquecimento. Eles quase morreram congelados.
Se eu fosse detido, seria preciso arrumar outra pessoa para buscar o pessoal. Mas tínhamos formas de fazer isso. Enquanto eu viajava, Adriano ficava com um computado ligado no Google Maps e com dois celulares. Ele ia seguindo nossas posições.
Em geral, os brasileiros não aparentavam muito medo. Eram muito determinados, gente trabalhadora, honesta e religiosa. Todos iam para Toronto. A economia da cidade estava indo bem, e eles já tinham empregos esperando. Nos EUA, a crise estava começando.

PERIGOS
Sempre soube que seria perigoso. Nas duas últimas viagens tive muitas complicações com o pessoal da imigração. Senti que estava muito perto de ser preso e decidi que era hora de parar.
Algum tempo depois, Adriano foi preso perto de Houston e acho que acabou deportado para o Brasil.
Não fiz muito dinheiro. Muitos "coiotes" cobram US$ 12 mil para cruzar a fronteira. Começamos cobrando US$ 1.000 por pessoa, mas isso não cobria os custos. No fim estávamos cobrando US$ 2.000. Os brasileiros ficavam felizes de pagar tão pouco.
Minha família não sabia que as pessoas que eu levava ao Canadá eram ilegais. Só descobriram depois que o trabalho tinha acabado. Não aprovam, mas sempre souberam da minha crença de que é preciso ajudar estranhos com bondade.
Foi o período mais interessante da minha vida. Muita gente discorda, mas para mim era algo muito positivo. Sinto saudades.


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