UOL


São Paulo, quinta-feira, 11 de setembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Glucksmann e Todorov divergem sobre guerra

Glucksmann defende guerra dos EUA contra o terrorismo e queda de Saddam; Todorov ataca o unilateralismo americano

ROGER-POL DROIT
DO "LE MONDE"

Os pensadores André Glucksmann (francês) e Tzvetan Todorov (búlgaro radicado na França) têm posições divergentes sobre a guerra ao terrorismo e a Guerra do Iraque. Para o primeiro, elas são justificáveis para levar a liberdade ao mundo e, assim, garantir sua segurança. Para o segundo, são prova de um unilateralismo (dos EUA) injustificável.
 

Pergunta - Suas opiniões relativas à intervenção americana no Iraque são totalmente opostas. Um vê nela uma iniciativa positiva, o outro, um erro. Vocês poderiam explicar o que pensam?
André Glucksmann -
É uma boa iniciativa em desespero de causa. A melhor solução teria sido conseguir a saída de Saddam Hussein por meio de uma resolução da ONU acompanhada de uma demonstração de força. A queda de Saddam é uma vitória. Se existe erro, foi cometido por aqueles que ameaçaram com o veto -França, Alemanha, Rússia, China- e deixaram de exercer pressão suficiente sobre o tirano para que ele partisse sem um ônus tão grande. Torturas, valas comuns, milhões de assassinados e desaparecidos -foi isso o que legitimou a ação. Além disso, um poder que martiriza selvagemente seus súditos desloca o ódio que suscita para outras frentes, atacando seus vizinhos. As tiranias trazem em seu bojo as guerras, e Saddam lançou várias -era um fósforo aceso numa região que é um barril de pólvora. Como dizem os iraquianos, a principal arma de destruição em massa era o próprio Saddam.

Tzvetan Todorov - O argumento principal proposto pelos partidários da intervenção não era o despotismo de Saddam, mas a presença de armas de destruição em massa. Hoje sabemos que não existia nenhum perigo iminente para nós, sendo que esse ""nós" inclui tanto a União Européia quanto os EUA. Para avaliar essa guerra, é preciso distinguir diversas perspectivas. Quero chamar a atenção, em primeiro lugar, para o fato de que seus efeitos estão sendo negativos até mesmo nos EUA. A guerra encorajou o espírito chauvinista, reduziu as liberdades individuais, o pluralismo de informação e os próprios recursos do Estado. Ela favoreceu a intolerância e a unanimidade.
O terrorismo internacional já tinha sido enfraquecido pela intervenção no Afeganistão. Duvido que tenha sido reduzido pela guerra no Iraque.
E, se é verdade que a grande maioria dos iraquianos deu um suspiro de alívio quando o tirano foi derrubado, também assistimos à explosão de anarquia que acompanhou sua queda -e a anarquia, se se prolongar, pode acabar sendo pior do que a tirania. Se a anarquia for subjugada por uma força militar estrangeira, isso corre o risco de criar uma situação de tensão insuportável. Se, como devemos desejar, ela for substituída por uma força local, nada nos garante que ela será nossa aliada e irá preservar nossos interesses. Uma república islâmica ou mesmo laica pode ser mais hostil aos EUA e à União Européia do que Saddam.

Pergunta - Qual é a ligação entre a operação realizada contra o regime de Saddam Hussein e a luta contra o terrorismo, tal como ela se manifestou desde 11 de setembro de 2001?
Glucksmann -
Observem a lógica geopolítica. Qual era o objetivo de Khomeini, Bin Laden e Saddam Hussein? Seu alvo era o mesmo: Riad, ou seja, uma potência teológica fantástica -decidir, via Meca, por milhões de árabes e 1 bilhão de muçulmanos-, uma potência energética e financeira gigantesca, o suficiente para fazer o mundo inteiro ouvi-la. Para interromper essa escalada, os EUA só poderiam agir de maneira indireta -tomar Bagdá para cortar o caminho a Riad, com isso dissuadindo o terrorismo.

Todorov - A maioria dos americanos continua a acreditar que Saddam foi responsável pelo 11 de setembro e que a luta contra o terrorismo justificou a intervenção. Acontece que o Iraque era um dos poucos lugares do Oriente Médio onde os terroristas tinham entrada proibida. Eles estão no país agora justamente em consequência da intervenção. O objetivo da guerra no Iraque era controlar o poder material e espiritual da Arábia Saudita? Não entendo o que nos deu o direito de redesenhar dessa maneira o mapa do mundo de amanhã. Se for esse o caso, será que as divisões americanas poderão deixar Bagdá algum dia? E como reconciliar esse objetivo com o de levar a liberdade ao Iraque? Não se trata de uma hipótese excessivamente otimista, segundo a qual a liberdade deles e a nossa segurança andam sempre e necessariamente juntas?

Glucksmann - A alternativa que você defende é típica do que eu chamo de um pensamento de 10 de setembro. No dia 11, os americanos compreenderam que segurança e liberdade são indissociáveis. É impossível defender nossa segurança sem trabalhar em prol da liberdade de outros. Um pequeno grupo de americanos já se dava conta disso havia muito tempo. Essa idéia de que a liberdade dos afegãos era essencial para o destino do mundo, nós a desenvolvemos notadamente com Bernard Kouchner e Bernard-Henri Lévy. Ela não foi ouvida. Foi aceita a ditadura do Taleban.
O resultado foi Manhattan. Tivéssemos ajudado a oposição ao Taleban, as torres talvez continuassem em pé até hoje.
No dia 11 de setembro, as evidências impuseram uma guinada gigantesca na política americana. Até então, bastava o respeito das tiranias estabelecidas para garantir a segurança mundial. Ao descobrir quantos regimes despóticos alimentam os terroristas, os americanos compreenderam, mais rapidamente do que Todorov, que sua segurança passava pela liberdade dos povos.
Hoje repetimos com a Tchetchênia os mesmos erros cometidos ontem com o Afeganistão. Os russos devastam o país e deixam louca de sofrimento uma população que, até nova ordem, resiste mas não pratica um terrorismo em grande escala. Ela corre o risco de sucumbir diante dele, e veremos o cenário afegão reproduzido. Em lugar de fazer reverências diante do presidente Vladimir Putin, melhor seria lhe explicar que a segurança da Rússia, a nossa e a liberdade dos Tchetchenos coincidem. Não é simples, mas é necessário.

Pergunta - Na opinião de vocês, o que legitimaria as respostas ao terrorismo? A moral? As instituições internacionais? Outra coisa?
Glucksmann -
Duas idéias de legitimidade dividem a Europa. Uma delas foi enunciada claramente por Dominique de Villepin [chanceler francês]: é legítima uma intervenção aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU. A outra é a experiência histórica da luta contra o despotismo, ainda fresca na memória do Leste Europeu. E penso em Marek Edelman, o segundo nome mais importante do gueto de Varsóvia, fundador do Solidariedade, que possui a dupla experiência da luta contra o nazismo e contra os comunistas. Como ele, outros líderes do Solidariedade e Vaclav Havel encarnam uma parte de nossa legitimidade européia, aquela da resistência contra as ditaduras.
Os dissidentes europeus orientais que citei aprovam a ação contra Saddam Hussein, herdeiro de um nacionalismo de estilo fascista/nazista e de uma organização militar stalinista.
Originalmente pluralista no que diz respeito à felicidade, ao paraíso e ao bem supremo, a Europa se ergue em combatente contra os males e os perigos comuns. O desafio que ela enfrenta neste momento é o terrorismo, peste planetária, forma paroxísmica da guerra contra civis. Cada operação merece ser discutida, mas decretar a priori, por medo da anarquia que a seguirá, que o fim de uma ignomínia jamais justifica uma guerra é chafurdar num ultraconservadorismo que pode nos condenar à morte.

Todorov - Se fosse realmente preciso escolher entre o conservadorismo e a revolução permanente, eu escolheria o primeiro. Mas não acredito que estejamos condenados a fazer essa escolha, não mais do que somos obrigados a optar ou pelo imperialismo ou pela impotência. Saiamos da lógica do terço excluído: é possível, sim, melhorar o mundo sem nos engajarmos numa guerra permanente.
Onde encontrar a legitimidade:? Eu não a buscaria, tampouco, nas resoluções do Conselho de Segurança. E, apesar do que possam ter dito certos ideólogos americanos, ela também não provém da força superior que a Providência ou a história colocaram nas mãos de um único povo. Enfim, temo o caos engendrado pela solução proposta por Glucksmann: que basta a cada indivíduo olhar no fundo de seu coração ou interrogar sua própria consciência.
Resta uma outra fonte de legitimidade: aquela que vem da partilha do poder, das limitações que são impostas ao poder por outros ou por ele mesmo. ""Nenhum poder que não tem limites pode ser legítimo", dizia Montesquieu. Uma limitação como essa, uma aceitação semelhante de que é preciso partilhar o poder com outros, constituiria um reconhecimento da pluralidade. O erro da política americana consiste em não buscar esse tipo de legitimidade, em agir com base unicamente no que lhe parece ser seu direito, sem ouvir os outros.
Quanto ao direito de ingerência que nós nos outorgamos, ele cria mais problemas do que os que resolve. Se declarássemos guerra a todas as ditaduras existentes, as hostilidades correriam o risco de se prolongar por muito tempo, e nem por isso, temo, o mundo se tornaria um lugar mais habitável.

Glucksmann - Dois genocídios recentes, no Camboja e em Ruanda, fundamentam a necessidade do direito de ingerência que justamente vem fixar limites: ninguém poderia massacrar impunemente dentro de suas próprias fronteiras nem tomar o poder pelo terrorismo e exercê-lo pelo terror. Guerra humanitária e guerra contra o terrorismo são uma única e mesma coisa. A liberdade dos povos, os direitos humanos e a segurança de todos andam juntos. Esse é o preço da paz.


Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Doutrina Bush mina elo transatlântico
Próximo Texto: Perfis: Saiba mais sobre André Glucksman e Tzvetan Todorov
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.