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Glucksmann e Todorov divergem sobre guerra
Glucksmann defende guerra dos EUA contra o terrorismo e queda de Saddam; Todorov ataca o unilateralismo americano
ROGER-POL DROIT
DO "LE MONDE"
Os pensadores André Glucksmann (francês) e Tzvetan Todorov (búlgaro radicado na França)
têm posições divergentes sobre a
guerra ao terrorismo e a Guerra
do Iraque. Para o primeiro, elas
são justificáveis para levar a liberdade ao mundo e, assim, garantir
sua segurança. Para o segundo,
são prova de um unilateralismo
(dos EUA) injustificável.
Pergunta - Suas opiniões relativas à intervenção americana no
Iraque são totalmente opostas. Um
vê nela uma iniciativa positiva, o
outro, um erro. Vocês poderiam explicar o que pensam?
André Glucksmann - É uma boa
iniciativa em desespero de causa.
A melhor solução teria sido conseguir a saída de Saddam Hussein
por meio de uma resolução da
ONU acompanhada de uma demonstração de força. A queda de
Saddam é uma vitória. Se existe
erro, foi cometido por aqueles
que ameaçaram com o veto
-França, Alemanha, Rússia,
China- e deixaram de exercer
pressão suficiente sobre o tirano
para que ele partisse sem um ônus
tão grande. Torturas, valas comuns, milhões de assassinados e
desaparecidos -foi isso o que legitimou a ação. Além disso, um
poder que martiriza selvagemente seus súditos desloca o ódio que
suscita para outras frentes, atacando seus vizinhos. As tiranias
trazem em seu bojo as guerras, e
Saddam lançou várias -era um
fósforo aceso numa região que é
um barril de pólvora. Como dizem os iraquianos, a principal arma de destruição em massa era o
próprio Saddam.
Tzvetan Todorov - O argumento
principal proposto pelos partidários da intervenção não era o despotismo de Saddam, mas a presença de armas de destruição em
massa. Hoje sabemos que não
existia nenhum perigo iminente
para nós, sendo que esse ""nós" inclui tanto a União Européia quanto os EUA. Para avaliar essa guerra, é preciso distinguir diversas
perspectivas. Quero chamar a
atenção, em primeiro lugar, para
o fato de que seus efeitos estão
sendo negativos até mesmo nos
EUA. A guerra encorajou o espírito chauvinista, reduziu as liberdades individuais, o pluralismo de
informação e os próprios recursos do Estado. Ela favoreceu a intolerância e a unanimidade.
O terrorismo internacional já tinha sido enfraquecido pela intervenção no Afeganistão. Duvido
que tenha sido reduzido pela
guerra no Iraque.
E, se é verdade que a grande
maioria dos iraquianos deu um
suspiro de alívio quando o tirano
foi derrubado, também assistimos à explosão de anarquia que
acompanhou sua queda -e a
anarquia, se se prolongar, pode
acabar sendo pior do que a tirania. Se a anarquia for subjugada
por uma força militar estrangeira,
isso corre o risco de criar uma situação de tensão insuportável. Se,
como devemos desejar, ela for
substituída por uma força local,
nada nos garante que ela será nossa aliada e irá preservar nossos interesses. Uma república islâmica
ou mesmo laica pode ser mais
hostil aos EUA e à União Européia do que Saddam.
Pergunta - Qual é a ligação entre
a operação realizada contra o regime de Saddam Hussein e a luta contra o terrorismo, tal como ela se
manifestou desde 11 de setembro
de 2001?
Glucksmann - Observem a lógica
geopolítica. Qual era o objetivo de
Khomeini, Bin Laden e Saddam
Hussein? Seu alvo era o mesmo:
Riad, ou seja, uma potência teológica fantástica -decidir, via Meca, por milhões de árabes e 1 bilhão de muçulmanos-, uma potência energética e financeira gigantesca, o suficiente para fazer o
mundo inteiro ouvi-la. Para interromper essa escalada, os EUA só
poderiam agir de maneira indireta -tomar Bagdá para cortar o
caminho a Riad, com isso dissuadindo o terrorismo.
Todorov - A maioria dos americanos continua a acreditar que
Saddam foi responsável pelo 11 de
setembro e que a luta contra o terrorismo justificou a intervenção.
Acontece que o Iraque era um dos
poucos lugares do Oriente Médio
onde os terroristas tinham entrada proibida. Eles estão no país
agora justamente em consequência da intervenção. O objetivo da
guerra no Iraque era controlar o
poder material e espiritual da
Arábia Saudita? Não entendo o
que nos deu o direito de redesenhar dessa maneira o mapa do
mundo de amanhã. Se for esse o
caso, será que as divisões americanas poderão deixar Bagdá algum dia? E como reconciliar esse
objetivo com o de levar a liberdade ao Iraque? Não se trata de uma
hipótese excessivamente otimista,
segundo a qual a liberdade deles e
a nossa segurança andam sempre
e necessariamente juntas?
Glucksmann - A alternativa que
você defende é típica do que eu
chamo de um pensamento de 10
de setembro. No dia 11, os americanos compreenderam que segurança e liberdade são indissociáveis. É impossível defender nossa
segurança sem trabalhar em prol
da liberdade de outros. Um pequeno grupo de americanos já se
dava conta disso havia muito
tempo. Essa idéia de que a liberdade dos afegãos era essencial para o destino do mundo, nós a desenvolvemos notadamente com
Bernard Kouchner e Bernard-Henri Lévy. Ela não foi ouvida. Foi
aceita a ditadura do Taleban.
O resultado foi Manhattan. Tivéssemos ajudado a oposição ao
Taleban, as torres talvez continuassem em pé até hoje.
No dia 11 de setembro, as evidências impuseram uma guinada
gigantesca na política americana.
Até então, bastava o respeito das
tiranias estabelecidas para garantir a segurança mundial. Ao descobrir quantos regimes despóticos alimentam os terroristas, os
americanos compreenderam,
mais rapidamente do que Todorov, que sua segurança passava
pela liberdade dos povos.
Hoje repetimos com a Tchetchênia os mesmos erros cometidos ontem com o Afeganistão. Os
russos devastam o país e deixam
louca de sofrimento uma população que, até nova ordem, resiste
mas não pratica um terrorismo
em grande escala. Ela corre o risco
de sucumbir diante dele, e veremos o cenário afegão reproduzido. Em lugar de fazer reverências
diante do presidente Vladimir
Putin, melhor seria lhe explicar
que a segurança da Rússia, a nossa e a liberdade dos Tchetchenos
coincidem. Não é simples, mas é
necessário.
Pergunta - Na opinião de vocês, o
que legitimaria as respostas ao terrorismo? A moral? As instituições
internacionais? Outra coisa?
Glucksmann - Duas idéias de legitimidade dividem a Europa.
Uma delas foi enunciada claramente por Dominique de Villepin
[chanceler francês]: é legítima
uma intervenção aprovada pelo
Conselho de Segurança da ONU.
A outra é a experiência histórica
da luta contra o despotismo, ainda fresca na memória do Leste
Europeu. E penso em Marek
Edelman, o segundo nome mais
importante do gueto de Varsóvia,
fundador do Solidariedade, que
possui a dupla experiência da luta
contra o nazismo e contra os comunistas. Como ele, outros líderes do Solidariedade e Vaclav Havel encarnam uma parte de nossa
legitimidade européia, aquela da
resistência contra as ditaduras.
Os dissidentes europeus orientais que citei aprovam a ação contra Saddam Hussein, herdeiro de
um nacionalismo de estilo fascista/nazista e de uma organização
militar stalinista.
Originalmente pluralista no que
diz respeito à felicidade, ao paraíso e ao bem supremo, a Europa se
ergue em combatente contra os
males e os perigos comuns. O desafio que ela enfrenta neste momento é o terrorismo, peste planetária, forma paroxísmica da
guerra contra civis. Cada operação merece ser discutida, mas decretar a priori, por medo da anarquia que a seguirá, que o fim de
uma ignomínia jamais justifica
uma guerra é chafurdar num ultraconservadorismo que pode
nos condenar à morte.
Todorov - Se fosse realmente
preciso escolher entre o conservadorismo e a revolução permanente, eu escolheria o primeiro. Mas
não acredito que estejamos condenados a fazer essa escolha, não
mais do que somos obrigados a
optar ou pelo imperialismo ou pela impotência. Saiamos da lógica
do terço excluído: é possível, sim,
melhorar o mundo sem nos engajarmos numa guerra permanente.
Onde encontrar a legitimidade:?
Eu não a buscaria, tampouco, nas
resoluções do Conselho de Segurança. E, apesar do que possam
ter dito certos ideólogos americanos, ela também não provém da
força superior que a Providência
ou a história colocaram nas mãos
de um único povo. Enfim, temo o
caos engendrado pela solução
proposta por Glucksmann: que
basta a cada indivíduo olhar no
fundo de seu coração ou interrogar sua própria consciência.
Resta uma outra fonte de legitimidade: aquela que vem da partilha do poder, das limitações que
são impostas ao poder por outros
ou por ele mesmo. ""Nenhum poder que não tem limites pode ser
legítimo", dizia Montesquieu.
Uma limitação como essa, uma
aceitação semelhante de que é
preciso partilhar o poder com outros, constituiria um reconhecimento da pluralidade. O erro da
política americana consiste em
não buscar esse tipo de legitimidade, em agir com base unicamente no que lhe parece ser seu
direito, sem ouvir os outros.
Quanto ao direito de ingerência
que nós nos outorgamos, ele cria
mais problemas do que os que resolve. Se declarássemos guerra a
todas as ditaduras existentes, as
hostilidades correriam o risco de
se prolongar por muito tempo, e
nem por isso, temo, o mundo se
tornaria um lugar mais habitável.
Glucksmann - Dois genocídios
recentes, no Camboja e em Ruanda, fundamentam a necessidade
do direito de ingerência que justamente vem fixar limites: ninguém
poderia massacrar impunemente
dentro de suas próprias fronteiras
nem tomar o poder pelo terrorismo e exercê-lo pelo terror. Guerra
humanitária e guerra contra o terrorismo são uma única e mesma
coisa. A liberdade dos povos, os
direitos humanos e a segurança
de todos andam juntos. Esse é o
preço da paz.
Tradução de Clara Allain
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