São Paulo, quarta-feira, 11 de outubro de 2006

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ARTIGO

O Norte e o Sul

IGNACIO RAMONET

A dissensão na península Coreana cresceu acentuadamente, apesar dos repetidos avisos de Washington e Tóquio, após a Coréia do Norte ter feito disparos experimentais de sete mísseis, em 5 de julho. Os sete caíram no mar do Japão, embora um deles, o Taepodong-2, seja teoricamente capaz de alcançar o território dos EUA.
Os testes não infringiram leis internacionais, mas foram repreensíveis por ameaçarem a segurança no nordeste da Ásia, potencialmente uma das regiões mais perigosas do mundo. O nível de ansiedade aumentou ainda mais com o anúncio de Pyongyang, segunda, de que tinha testado uma arma nuclear.
Em setembro de 2005, Pyongyang se comprometeu a deixar seu programa de armas nucleares, e a decisão, adotada sob negociações em seis partes (China, Japão, Coréia do Norte, Rússia, Coréia do Sul e os EUA), suscitou grandes esperanças, sobretudo na Coréia do Sul.
Após a restauração da democracia, na década de 90, Seul começou a melhorar suas relações com seu vizinho setentrional. O presidente sul-coreano na época, Kim Dae-jung, visitou Pyongyang e em 15 de junho de 2000 assinou uma declaração conjunta com seu colega norte-coreano, Kim Jong-il, que marcou uma virada nas relações entre as duas Coréias.
As autoridades da Coréia do Sul confiam em diálogo e intercâmbios, especialmente na esfera econômica, além de no desenvolvimento de interesses comuns, para reduzir diferenças entre os dois países, prevenir conflitos e abrir caminho a uma eventual reunificação. Os intercâmbios comerciais hoje movimentam US$1 bilhão, e a Coréia do Sul é a segunda maior parceira comercial de Pyongyang, depois da China.
Uma zona econômica especial foi criada em Kaesong, ao norte do paralelo 38, e cerca de 8.000 norte-coreanos trabalham em empresas sul-coreanas estabelecidas ali. Apesar dos obstáculos persistentes, as duas partes estão trabalhando também em propostas para restaurar a ligação ferroviária entre Seul e Pyongyang, além de outras comunicações.
Após o acordo de 19 de setembro de 2005, a situação se deteriorou repentinamente quando o Tesouro norte-americano adotou medidas financeiras contra Pyongyang, sob o pretexto de que o Banco Delta Asia, em Macau, havia lavado dinheiro para a Coréia do Norte -acusação que nunca foi consubstanciada por uma investigação internacional posterior.
Em fevereiro deste ano, com medo do que Washington poderia fazer, o banco congelou ativos norte-coreanos avaliados em US$24 milhões. Pyongyang reagiu fechando a porta às conversações em seis partes, reafirmando seu direito de ter bombas nucleares e levando adiante os disparos experimentais que foram condenados pelo Conselho de Segurança da ONU, incluindo a China.
Segundo a Coréia do Norte, o governo norte-americano não quer uma solução diplomática e busca um objetivo apenas: uma mudança de regime. Algumas autoridades da Coréia do Sul compartilham essa opinião.
Kim Dae-jung, arquiteto da reconciliação com a Coréia do Norte e ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2000, nos disse em Seul, em 14 de setembro, que desaprovou os disparos experimentais de mísseis, mas que pensava que Washington não estava fazendo nada para acalmar a situação.
Os neoconservadores em Washington não querem a paz nessa região. Eles não defendem os interesses americanos, como fazia o presidente Bill Clinton; este apoiava os esforços em favor de um diálogo pacífico. Mas os neoconservadores têm obsessão por sanções, embora as sanções nunca tenham funcionado contra Cuba, Iraque, Afeganistão ou Irã.
Agora exortam Tóquio a também impor sanções. Isso alimenta os desentendimentos regionais e propicia aos elementos de direita no Japão uma desculpa para pedir o rearmamento do país, o que aumenta a desconfiança da China. Para Kim Dae-jung, tudo isso forma uma espiral perigosa.
O atual presidente sul-coreano, Roh Moo-huyn, tem visão semelhante. Ele normalmente é obrigado a tentar agradar seu poderoso aliado, mas se manteve firme na discussão com o presidente George W. Bush na cúpula de Washington, em 15 de setembro, em relação a três pontos sobre os quais os países têm posições discordantes.
Roh reiterou sua determinação de, no caso de uma guerra, assumir o comando militar dos 30 mil militares americanos estacionados na Coréia; insistiu sobre mais tempo para negociar os planos altamente impopulares para um acordo de livre comércio com os EUA e se recusou a impor mais sanções à Coréia do Norte.
Sobre esse ponto, Seul está determinada a não se dobrar diante das pressões de Washington, mas a conservar o direito de tomar suas próprias decisões. Como diz Kim Dae-jung, os sul-coreanos não querem a reunificação pela força, como aconteceu no Vietnã, nem uma reunificação destrutiva, como foi o caso na Alemanha. Eles querem ser deixados sozinhos para avançar em seu ritmo próprio, lenta e pacificamente, na direção de uma solução feliz.


O jornalista e escritor IGNACIO RAMONET é editor-chefe do "Le Monde Diplomatique"

Tradução de CLARA ALLAIN


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