São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 2005

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IRAQUE SOB TUTELA

Legitimidade do pleito parlamentar é questionada devido à presença americana

Dúvidas e violência cercam eleição no Iraque

KAREN MARÓN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BAGDÁ

A campanha política para as eleições parlamentares iraquianas da próxima quinta-feira começa em Amã, capital da Jordânia. Dos terraços dos edifícios, convocando as pessoas a participar do pleito, pendem imensos cartazes, alguns protagonizados por candidatos ou personalidades que se tornaram influentes depois da invasão -muitas das quais assassinadas nos últimos dias- e outros por belas e sorridentes mulheres que vaticinam um futuro melhor para o Iraque.
Do centro da cidade, perto do Teatro Romano, até as tortuosas e estreitas ruas dessa capital assentada sobre sete colinas, transcorre uma campanha, às vezes ocasional e discreta, outras colorida e efusiva, advogando um "Iraque para todos os iraquianos".
Cerca de 15 milhões dos 26 milhões de iraquianos poderão escolher entre 231 partidos para preencher as 275 cadeiras da Assembléia Nacional do país. O voto é facultativo, e na última votação -o plebiscito que aprovou a nova Constituição do país- o índice de comparecimento ficou em 63%, apesar da forte onda de violência, semelhante à que se observa agora no país.
A atividade é escassa na embaixada iraquiana em Amã, ao contrário das semanas anteriores. Apenas alguns iraquianos visitam o edifício para regularizar seus documentos, e cerca de dez jornalistas ocidentais, ignorando a recomendação de não entrar no Iraque, estavam solicitando vistos para o país. As medidas de segurança implementadas para a eleição proíbem expressamente a entrada de estrangeiros árabes no Iraque, dado o temor de que isso facilite o ingresso de combatentes, que costuma se intensificar nessas datas, e a tendência é visível na embaixada iraquiana.
Em três horas e em duas oportunidades, ouvem-se primeiro os soluços e depois os gritos dolorosos de duas mulheres diferentes. Uma está se queixando do desaparecimento de seu filho em Nínive, a outra, acompanhada de parentes, tenta descobrir onde foi parar seu marido, em Samarra.
Um funcionário informa discretamente que ambos estão desaparecidos e que não há o que as autoridades possam fazer. Essa mãe e essa mulher representam, a mil quilômetros de distância das ruas de Bagdá, o clima em que o país aguarda as eleições, que estão longe de transcorrer pacífica ou organizadamente, em meio à ocupação. Dia após dia as condições de vida se deterioram, e a situação da população é desesperadora.
Uma vez mais, diferentes organismos que acompanham o desenvolvimento do processo eleitoral questionam sua legitimidade. As eleições estão envoltas em uma voragem de violência, manipulação, crise humanitária e florescimento de diversos grupos paramilitares.

A ocupação "iraquizada"
"O processo político no Iraque está sujeito à ocupação e, portanto, qualquer mudança é ilegal aos olhos do direito internacional", afirma Carlos Varela, diretor da Campanha contra a Ocupação e pela Soberania do Iraque (Ceosi), criada em junho do ano passado na Espanha, um dos poucos civis a ter visitado a devastada Fallujah.
"O processo está sendo considerado aceitável, quando não seria aceito em nenhum lugar do mundo", diz o antropólogo, que visita o Iraque há 14 anos. "Estamos vivendo em um país em guerra e onde não existe possibilidade de promover propostas alternativas para que as pessoas possam votar livremente, fora do controle territorial das máfias e milícias."
O novo processo eleitoral tem características semelhantes às da votação realizada em janeiro passado e ao recente referendo constitucional: ausência de observadores internacionais, ignorância quanto ao número e a habilitação das pessoas com direito a votar e o objeto da votação, e dificuldades logísticas e de segurança, especialmente nas zonas sob influência sunita. Isso demonstra as dificuldades do projeto dos Estados Unidos, que estão colocando em marcha seus planos para uma ocupação mais "iraquizada".
"Não existem condições objetivas para que ninguém possa exercer seu direto de voto, ainda que a vontade democrática do povo iraquiano de participar do pleito possa ser legítima. Isso não significa que as pessoas que vão às urnas sejam colaboracionistas, mas que o processo está viciado, inserido em uma lógica cujo objetivo é fazer perdurar a ocupação", afirma o especialista.
Essa institucionalização se produz sob o efeito da influência do Irã sobre o país, devido aos atrativos do país vizinho para a população xiita, que compõe mais de 60% dos habitantes do Iraque.
"A penetração e o controle hegemônico de parte das correntes de orientação xiita iraniana vêm deixando sua marca no conteúdo da Constituição, e é complicado dizer que os Estados Unidos estejam democratizando o país quando ele está deixando de ser um Estado laico para se tornar um Estado islâmico, em um lugar onde convivem comunidades que não são muçulmanas", diz Varela.
É por isso que o Iraque se prepara para novas eleições nas quais a segregação da minoria sunita voltará a ser um fator. O conselho de ulemás anunciou um boicote ao pleito por se realizar sob a ocupação e por considerar que a comunidade está sofrendo uma campanha de assassinatos, seqüestros e detenções que pressagiam um cenário semelhante ao das eleições anteriores.


A argentina Karen Marón é especializada na cobertura de conflitos armados, como na Colômbia e no Oriente Médio

Tradução de Paulo Migliacci


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