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IRAQUE SOB TUTELA
Legitimidade do pleito parlamentar é questionada devido à presença americana
Dúvidas e violência cercam eleição no Iraque
KAREN MARÓN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BAGDÁ
A campanha política para as
eleições parlamentares iraquianas
da próxima quinta-feira começa
em Amã, capital da Jordânia. Dos
terraços dos edifícios, convocando as pessoas a participar do pleito, pendem imensos cartazes, alguns protagonizados por candidatos ou personalidades que se
tornaram influentes depois da invasão -muitas das quais assassinadas nos últimos dias- e outros
por belas e sorridentes mulheres
que vaticinam um futuro melhor
para o Iraque.
Do centro da cidade, perto do
Teatro Romano, até as tortuosas e
estreitas ruas dessa capital assentada sobre sete colinas, transcorre
uma campanha, às vezes ocasional e discreta, outras colorida e
efusiva, advogando um "Iraque
para todos os iraquianos".
Cerca de 15 milhões dos 26 milhões de iraquianos poderão escolher entre 231 partidos para
preencher as 275 cadeiras da Assembléia Nacional do país. O voto
é facultativo, e na última votação
-o plebiscito que aprovou a nova Constituição do país- o índice de comparecimento ficou em
63%, apesar da forte onda de violência, semelhante à que se observa agora no país.
A atividade é escassa na embaixada iraquiana em Amã, ao contrário das semanas anteriores.
Apenas alguns iraquianos visitam
o edifício para regularizar seus
documentos, e cerca de dez jornalistas ocidentais, ignorando a recomendação de não entrar no Iraque, estavam solicitando vistos
para o país. As medidas de segurança implementadas para a eleição proíbem expressamente a entrada de estrangeiros árabes no
Iraque, dado o temor de que isso
facilite o ingresso de combatentes,
que costuma se intensificar nessas
datas, e a tendência é visível na
embaixada iraquiana.
Em três horas e em duas oportunidades, ouvem-se primeiro os
soluços e depois os gritos dolorosos de duas mulheres diferentes.
Uma está se queixando do desaparecimento de seu filho em Nínive, a outra, acompanhada de parentes, tenta descobrir onde foi
parar seu marido, em Samarra.
Um funcionário informa discretamente que ambos estão desaparecidos e que não há o que as
autoridades possam fazer. Essa
mãe e essa mulher representam, a
mil quilômetros de distância das
ruas de Bagdá, o clima em que o
país aguarda as eleições, que estão
longe de transcorrer pacífica ou
organizadamente, em meio à ocupação. Dia após dia as condições
de vida se deterioram, e a situação
da população é desesperadora.
Uma vez mais, diferentes organismos que acompanham o desenvolvimento do processo eleitoral questionam sua legitimidade. As eleições estão envoltas em
uma voragem de violência, manipulação, crise humanitária e florescimento de diversos grupos
paramilitares.
A ocupação "iraquizada"
"O processo político no Iraque
está sujeito à ocupação e, portanto, qualquer mudança é ilegal aos
olhos do direito internacional",
afirma Carlos Varela, diretor da
Campanha contra a Ocupação e
pela Soberania do Iraque (Ceosi),
criada em junho do ano passado
na Espanha, um dos poucos civis
a ter visitado a devastada Fallujah.
"O processo está sendo considerado aceitável, quando não seria
aceito em nenhum lugar do mundo", diz o antropólogo, que visita
o Iraque há 14 anos. "Estamos vivendo em um país em guerra e
onde não existe possibilidade de
promover propostas alternativas
para que as pessoas possam votar
livremente, fora do controle territorial das máfias e milícias."
O novo processo eleitoral tem
características semelhantes às da
votação realizada em janeiro passado e ao recente referendo constitucional: ausência de observadores internacionais, ignorância
quanto ao número e a habilitação
das pessoas com direito a votar e o
objeto da votação, e dificuldades
logísticas e de segurança, especialmente nas zonas sob influência
sunita. Isso demonstra as dificuldades do projeto dos Estados
Unidos, que estão colocando em
marcha seus planos para uma
ocupação mais "iraquizada".
"Não existem condições objetivas para que ninguém possa exercer seu direto de voto, ainda que a
vontade democrática do povo iraquiano de participar do pleito
possa ser legítima. Isso não significa que as pessoas que vão às urnas sejam colaboracionistas, mas
que o processo está viciado, inserido em uma lógica cujo objetivo
é fazer perdurar a ocupação", afirma o especialista.
Essa institucionalização se produz sob o efeito da influência do
Irã sobre o país, devido aos atrativos do país vizinho para a população xiita, que compõe mais de
60% dos habitantes do Iraque.
"A penetração e o controle hegemônico de parte das correntes
de orientação xiita iraniana vêm
deixando sua marca no conteúdo
da Constituição, e é complicado
dizer que os Estados Unidos estejam democratizando o país quando ele está deixando de ser um Estado laico para se tornar um Estado islâmico, em um lugar onde
convivem comunidades que não
são muçulmanas", diz Varela.
É por isso que o Iraque se prepara para novas eleições nas quais a
segregação da minoria sunita voltará a ser um fator. O conselho de
ulemás anunciou um boicote ao
pleito por se realizar sob a ocupação e por considerar que a comunidade está sofrendo uma campanha de assassinatos, seqüestros e
detenções que pressagiam um cenário semelhante ao das eleições
anteriores.
A argentina Karen Marón é especializada na cobertura de conflitos armados, como na Colômbia e no Oriente Médio
Tradução de Paulo Migliacci
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