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ARTIGO
Os dois pinochetismos, um vivo, outro morto
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
Augusto Pinochet Ugarte, como símbolo de ditadura cruel e
nefanda, morreu bem antes de
seu coração parar ontem de bater. O pinochetismo, sinônimo
acabado de violações aos direitos humanos, desrespeito às liberdades públicas e aos direitos
civis, de perseguição hedionda
não apenas aos opositores mas
até aos neutros, caiu felizmente
em desuso já faz algum tempo
na América Latina.
Não deixa de ser uma agradável coincidência o fato de que
Pinochet morre no mesmo mês
em que se fechou um dos mais
suculentos ciclos eleitorais do
subcontinente, o modo civilizado de resolver divergências de
cunho político ou ideológico.
É verdade que o festival recente de eleições deu vitórias,
em alguns casos, a candidatos a
caudilho, como o venezuelano
Hugo Chávez e o boliviano Evo
Morales. Mas, por mais que as
tentações autoritárias rondem
por aí, o fato é que não há presos políticos nem na Venezuela
nem na Bolívia, a mídia é livre,
os partidos políticos funcionam regularmente, as eleições
são atestadas como livres e justas por observadores externos
-tudo ao contrário do que
acontecia no Chile de Pinochet.
A derrota do pinochetismo
aparece com nitidez na mais recente pesquisa do Latinobarómetro, talvez o metro que melhor mede os humores da região: apenas 13% dos chilenos
consultados dizem que "um governo autoritário, em certas
circunstâncias, pode ser preferível a um democrático". A porcentagem de chilenos que votou pela continuidade de Pinochet no plebiscito de 1988 foi
substancialmente maior, 44%.
Mas, se o pinochetismo político já estava morto antes de Pinochet, segue vivo e triunfante
o modelo econômico implantado por sua ditadura.
O Chile de Pinochet foi o pioneiro na adoção de medidas
que, mais tarde, constituiriam
o "Consenso de Washington", o
modelo neoliberal ou o pensamento único, como se queira
chamá-lo.
Desmontou o Estado, retirando-o das atividades econômicas, mas não do cobre, a
principal riqueza chilena (o que
só mostra que liberais podem
ser ultraliberais na economia
mas não queimam dinheiro).
Fez a reforma da Previdência
Social do sonho de todo governante latino-americano dos últimos 20 e poucos anos. Com a
supressão das liberdades públicas e a feroz perseguição ao sindicalismo, não foi difícil impô-la, ao contrário do que acontece
nas democracias vizinhas.
Promoveu uma abertura econômica que nem os mais liberais dos ministros brasileiros
da Fazenda conseguiram implementar.
Adotou a princípio, é verdade, uma política cambial nada
liberal. Ao contrário, optou pelo câmbio fixo que, como sempre ocorre na América Latina,
devasta a produção local. Teve
que voltar atrás em 1982, e
aproveitou para completar o ciclo de reformas liberais.
O custo foi imenso, em desemprego, em queda do rendimento dos assalariados e na
distribuição de renda. Ainda
maior se se considerar que o
Chile pré-Pinochet era dos países menos desiguais em um
subcontinente marcado pela
iniquidade. Os salários, no último ano do governo constitucional de Salvador Allende
(1973), chegaram a representar
55% do Produto Interno Bruto,
medida da renda de um país.
Nunca mais voltaram a esse patamar ou a um nível parecido.
A democracia não desfez o
pinochetismo econômico. É
verdade que mudou a ênfase
orçamentária: o social passou a
receber muitíssimos mais recursos. Mas as linhas gerais do
modelo permanecem as mesmas até hoje, 17 anos e 4 presidentes depois da saída de Pinochet do Palácio de La Moneda,
a sede governamental.
O que é, de resto explicável:
Pinochet saiu da Presidência
no exato ano (1990) em que
caiu o Muro de Berlim, símbolo
do fim do comunismo.
Tornou-se impraticável reivindicar o socialismo. Tanto
que Hugo Chávez, um dos raros
líderes que ainda o fazem, fala
muito mais em "bolivarianismo", seja lá o que signifique.
Mesmo no Chile, país em que
o Partido Socialista tem uma rica e antiga tradição, o presidente anterior, Ricardo Lagos, e a
atual, Michelle Bachelet, são
nominalmente socialistas, mas
o rótulo é apenas o que nos países hispânicos se chama de "saludo a la bandera". Um cumprimento ao passado, sem maiores
conseqüências práticas.
Não deixa de ser uma cruel
ironia histórica que o pinochetismo, responsável pela intervenção do Estado ao limite do
genocídio, sobreviva à morte do
criador como símbolo de política ultraliberal (na economia).
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