São Paulo, segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

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ARTIGO

Os dois pinochetismos, um vivo, outro morto

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

Augusto Pinochet Ugarte, como símbolo de ditadura cruel e nefanda, morreu bem antes de seu coração parar ontem de bater. O pinochetismo, sinônimo acabado de violações aos direitos humanos, desrespeito às liberdades públicas e aos direitos civis, de perseguição hedionda não apenas aos opositores mas até aos neutros, caiu felizmente em desuso já faz algum tempo na América Latina.
Não deixa de ser uma agradável coincidência o fato de que Pinochet morre no mesmo mês em que se fechou um dos mais suculentos ciclos eleitorais do subcontinente, o modo civilizado de resolver divergências de cunho político ou ideológico.
É verdade que o festival recente de eleições deu vitórias, em alguns casos, a candidatos a caudilho, como o venezuelano Hugo Chávez e o boliviano Evo Morales. Mas, por mais que as tentações autoritárias rondem por aí, o fato é que não há presos políticos nem na Venezuela nem na Bolívia, a mídia é livre, os partidos políticos funcionam regularmente, as eleições são atestadas como livres e justas por observadores externos -tudo ao contrário do que acontecia no Chile de Pinochet.
A derrota do pinochetismo aparece com nitidez na mais recente pesquisa do Latinobarómetro, talvez o metro que melhor mede os humores da região: apenas 13% dos chilenos consultados dizem que "um governo autoritário, em certas circunstâncias, pode ser preferível a um democrático". A porcentagem de chilenos que votou pela continuidade de Pinochet no plebiscito de 1988 foi substancialmente maior, 44%.
Mas, se o pinochetismo político já estava morto antes de Pinochet, segue vivo e triunfante o modelo econômico implantado por sua ditadura.
O Chile de Pinochet foi o pioneiro na adoção de medidas que, mais tarde, constituiriam o "Consenso de Washington", o modelo neoliberal ou o pensamento único, como se queira chamá-lo.
Desmontou o Estado, retirando-o das atividades econômicas, mas não do cobre, a principal riqueza chilena (o que só mostra que liberais podem ser ultraliberais na economia mas não queimam dinheiro).
Fez a reforma da Previdência Social do sonho de todo governante latino-americano dos últimos 20 e poucos anos. Com a supressão das liberdades públicas e a feroz perseguição ao sindicalismo, não foi difícil impô-la, ao contrário do que acontece nas democracias vizinhas.
Promoveu uma abertura econômica que nem os mais liberais dos ministros brasileiros da Fazenda conseguiram implementar.
Adotou a princípio, é verdade, uma política cambial nada liberal. Ao contrário, optou pelo câmbio fixo que, como sempre ocorre na América Latina, devasta a produção local. Teve que voltar atrás em 1982, e aproveitou para completar o ciclo de reformas liberais.
O custo foi imenso, em desemprego, em queda do rendimento dos assalariados e na distribuição de renda. Ainda maior se se considerar que o Chile pré-Pinochet era dos países menos desiguais em um subcontinente marcado pela iniquidade. Os salários, no último ano do governo constitucional de Salvador Allende (1973), chegaram a representar 55% do Produto Interno Bruto, medida da renda de um país. Nunca mais voltaram a esse patamar ou a um nível parecido.
A democracia não desfez o pinochetismo econômico. É verdade que mudou a ênfase orçamentária: o social passou a receber muitíssimos mais recursos. Mas as linhas gerais do modelo permanecem as mesmas até hoje, 17 anos e 4 presidentes depois da saída de Pinochet do Palácio de La Moneda, a sede governamental.
O que é, de resto explicável: Pinochet saiu da Presidência no exato ano (1990) em que caiu o Muro de Berlim, símbolo do fim do comunismo.
Tornou-se impraticável reivindicar o socialismo. Tanto que Hugo Chávez, um dos raros líderes que ainda o fazem, fala muito mais em "bolivarianismo", seja lá o que signifique.
Mesmo no Chile, país em que o Partido Socialista tem uma rica e antiga tradição, o presidente anterior, Ricardo Lagos, e a atual, Michelle Bachelet, são nominalmente socialistas, mas o rótulo é apenas o que nos países hispânicos se chama de "saludo a la bandera". Um cumprimento ao passado, sem maiores conseqüências práticas.
Não deixa de ser uma cruel ironia histórica que o pinochetismo, responsável pela intervenção do Estado ao limite do genocídio, sobreviva à morte do criador como símbolo de política ultraliberal (na economia).


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