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ARTIGO
Carta aberta às elites religiosas muçulmanas
CONTARDO CALLIGARIS
COLUNISTA DA FOLHA
Caros amigos,
há, entre nós, grandes diferenças culturais, ou seja, não temos
os mesmos hábitos da mente e do
corpo. Além disso, entre o islã e,
digamos assim, o Ocidente, há
uma longa história de desconfianças e guerras. Mas a virulência
atual do conflito pede novos esforços para saber o que acontece.
Nestes dias, a imprensa propôs
fotografias de manifestantes assediando embaixadas ocidentais no
mundo islâmico. Curioso, em
muitas delas, à primeira vista, não
dá para entender se os manifestantes estão atacando as embaixadas ou tentando entrar para pedir
asilo. Claro, o equívoco é meu,
mas ele tem suas razões de ser.
Entre aqueles manifestantes,
quantos já planejaram emigrar
para um país europeu? Na hora
em que as massas se reuniam para
saquear e queimar, quantos muçulmanos estavam se aventurando pelo estreito de Gibraltar, num
barco mal aparelhado, na esperança de alcançar a Espanha?
Quantos circulavam pelos Bálcãs,
escondidos num caminhão, para
chegar a Londres?
Não digam que são traidores,
vendidos ao sonho ocidental. Se
os milhões de imigrantes muçulmanos que vivem na Europa fossem "vendidos", eles estariam,
hoje, solidamente integrados à
população européia. Acontece o
contrário, e não é apenas pela resistência das nações ocidentais. O
fato é que o êxodo de populações
muçulmanas à Europa inaugurou
uma nova forma de emigração,
especialmente trágica. Explico.
Qualquer emigração é um movimento de idealização e de amor.
Mesmo que procure apenas melhorias financeiras, o emigrante
deposita seus sonhos no país que
o hospedará. Ora, há uma tragédia que dura há décadas: a dolorosa divisão, na alma do emigrante
muçulmano, entre a esperança
que deposita no país para onde se
muda e seu ódio mandado pela
nova vida com a qual ele sonha.
Mohammed Atta, um dos pilotos do 11 de Setembro, passou a
noite do dia 10 numa boate, bebendo e festejando. Estranho modo de se preparar para o sacrifício
de sua vida, não? Talvez, espatifando-se contra o World Trade
Center, o que ele queria não fosse
tanto matar milhares de americanos quanto, suprimindo-se, acabar de vez com sua intolerável
contradição interna.
O conflito, caros amigos, talvez
não seja entre islã e Ocidente. Talvez seja um conflito exasperado
dentro da alma islâmica, entre a
sedução do Ocidente e a fidelidade à cultura e à religião ancestral.
Esse conflito não será resolvido
por guerras ou terrores, nem por
protestos nem por tratados. Ele só
pode ser resolvido por vocês. Há
momentos em que as elites culturais e religiosas podem decidir o
destino de seus povos. Espero que
não seja tarde, espero que a voz
que chama do minarete ainda
possa sarar o conflito da subjetividade muçulmana hodierna.
Tomemos o caso dos medíocres
desenhos publicados por um jornal dinamarquês. Alguns deles
(os demais são inócuos, como vocês sabem) são charges contra o
Maomé dos homens-bomba, o
Maomé invocado pelo apóstolos
do terror. Ora, sou cristão, criado
na religião católica. Qual seria minha reação diante de charges em
que Cristo apareceria liderando o
extermínio dos albigenses, ou,
vestido de inquisidor, torturando
apóstatas e colocando fogo na pira de Giordano Bruno? Como reagiria ao ver Cristo, nos paramentos do papa romano, vendendo
indulgências plenárias ou, sapeca,
furando camisinhas numa sauna
gay? Ou, então, engravatado como um pastor, exigindo o dízimo
dos pobres? Uma coisa me parece
certa: não me indignaria com
quem desenhou as charges, mas
com aqueles que se escondem
atrás de Cristo para praticar seu
sectarismo, sua ganância, sua sede de poder ou sua estupidez.
Para dormir tranqüilo, não me
bastaria mandar uma carta de
desculpas às viúvas cátaras e aos
amigos de Giordano Bruno. Para
dormir tranqüilo, precisaria denunciar os falsários que se servem
de Cristo para justificar sua iniqüidade. Hoje, no cristianismo,
esse gesto é fácil. Um cardeal poderia conclamar que o papa é um
apóstata; no máximo, seria excomungado por uma igreja cuja autoridade, de qualquer forma, ele
não reconhece mais.
Mas houve uma época em que
os homens religiosos da Reforma
arriscaram sua vida para produzir
um cisma que era imposto por
suas consciências.
Ora, o terror se espalha, e ouço
só palavras constrangidas e formais. Onde estão os imames que
tenham a coragem de jogar um
anátema contra o ódio e o terror?
Quando, caros amigos, aparecerão seus Luteros? No lugar onde
eles são esperados, aparecem
imames decretando a morte de
escritores laicos, ou, por que não,
de chargistas dinamarqueses.
Não é por acaso que a modalidade do terror islâmico, hoje, é o
atentado suicida. Não é uma ironia da história que os mortos destes dias se contem entre os manifestantes muçulmanos. Pois uma
contradição interna, atiçada até a
um paroxismo insolúvel, só se resolve no gesto extremo de quem,
para silenciar seu conflito, acaba
com sua própria vida.
Se vocês se calarem hoje, se não
defenderem o Maomé no qual vocês acreditam contra os que o
aviltam invocando-o em seu ódio
do Ocidente, se vocês não tiverem
a coragem de apaziguar a alma islâmica, a história contará que vocês levaram seu povo ao suicídio.
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