São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 2006

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ARTIGO

Carta aberta às elites religiosas muçulmanas

CONTARDO CALLIGARIS
COLUNISTA DA FOLHA

Caros amigos,
há, entre nós, grandes diferenças culturais, ou seja, não temos os mesmos hábitos da mente e do corpo. Além disso, entre o islã e, digamos assim, o Ocidente, há uma longa história de desconfianças e guerras. Mas a virulência atual do conflito pede novos esforços para saber o que acontece.
Nestes dias, a imprensa propôs fotografias de manifestantes assediando embaixadas ocidentais no mundo islâmico. Curioso, em muitas delas, à primeira vista, não dá para entender se os manifestantes estão atacando as embaixadas ou tentando entrar para pedir asilo. Claro, o equívoco é meu, mas ele tem suas razões de ser.
Entre aqueles manifestantes, quantos já planejaram emigrar para um país europeu? Na hora em que as massas se reuniam para saquear e queimar, quantos muçulmanos estavam se aventurando pelo estreito de Gibraltar, num barco mal aparelhado, na esperança de alcançar a Espanha? Quantos circulavam pelos Bálcãs, escondidos num caminhão, para chegar a Londres?
Não digam que são traidores, vendidos ao sonho ocidental. Se os milhões de imigrantes muçulmanos que vivem na Europa fossem "vendidos", eles estariam, hoje, solidamente integrados à população européia. Acontece o contrário, e não é apenas pela resistência das nações ocidentais. O fato é que o êxodo de populações muçulmanas à Europa inaugurou uma nova forma de emigração, especialmente trágica. Explico.
Qualquer emigração é um movimento de idealização e de amor. Mesmo que procure apenas melhorias financeiras, o emigrante deposita seus sonhos no país que o hospedará. Ora, há uma tragédia que dura há décadas: a dolorosa divisão, na alma do emigrante muçulmano, entre a esperança que deposita no país para onde se muda e seu ódio mandado pela nova vida com a qual ele sonha.
Mohammed Atta, um dos pilotos do 11 de Setembro, passou a noite do dia 10 numa boate, bebendo e festejando. Estranho modo de se preparar para o sacrifício de sua vida, não? Talvez, espatifando-se contra o World Trade Center, o que ele queria não fosse tanto matar milhares de americanos quanto, suprimindo-se, acabar de vez com sua intolerável contradição interna.
O conflito, caros amigos, talvez não seja entre islã e Ocidente. Talvez seja um conflito exasperado dentro da alma islâmica, entre a sedução do Ocidente e a fidelidade à cultura e à religião ancestral. Esse conflito não será resolvido por guerras ou terrores, nem por protestos nem por tratados. Ele só pode ser resolvido por vocês. Há momentos em que as elites culturais e religiosas podem decidir o destino de seus povos. Espero que não seja tarde, espero que a voz que chama do minarete ainda possa sarar o conflito da subjetividade muçulmana hodierna.
Tomemos o caso dos medíocres desenhos publicados por um jornal dinamarquês. Alguns deles (os demais são inócuos, como vocês sabem) são charges contra o Maomé dos homens-bomba, o Maomé invocado pelo apóstolos do terror. Ora, sou cristão, criado na religião católica. Qual seria minha reação diante de charges em que Cristo apareceria liderando o extermínio dos albigenses, ou, vestido de inquisidor, torturando apóstatas e colocando fogo na pira de Giordano Bruno? Como reagiria ao ver Cristo, nos paramentos do papa romano, vendendo indulgências plenárias ou, sapeca, furando camisinhas numa sauna gay? Ou, então, engravatado como um pastor, exigindo o dízimo dos pobres? Uma coisa me parece certa: não me indignaria com quem desenhou as charges, mas com aqueles que se escondem atrás de Cristo para praticar seu sectarismo, sua ganância, sua sede de poder ou sua estupidez.
Para dormir tranqüilo, não me bastaria mandar uma carta de desculpas às viúvas cátaras e aos amigos de Giordano Bruno. Para dormir tranqüilo, precisaria denunciar os falsários que se servem de Cristo para justificar sua iniqüidade. Hoje, no cristianismo, esse gesto é fácil. Um cardeal poderia conclamar que o papa é um apóstata; no máximo, seria excomungado por uma igreja cuja autoridade, de qualquer forma, ele não reconhece mais.
Mas houve uma época em que os homens religiosos da Reforma arriscaram sua vida para produzir um cisma que era imposto por suas consciências.
Ora, o terror se espalha, e ouço só palavras constrangidas e formais. Onde estão os imames que tenham a coragem de jogar um anátema contra o ódio e o terror? Quando, caros amigos, aparecerão seus Luteros? No lugar onde eles são esperados, aparecem imames decretando a morte de escritores laicos, ou, por que não, de chargistas dinamarqueses.
Não é por acaso que a modalidade do terror islâmico, hoje, é o atentado suicida. Não é uma ironia da história que os mortos destes dias se contem entre os manifestantes muçulmanos. Pois uma contradição interna, atiçada até a um paroxismo insolúvel, só se resolve no gesto extremo de quem, para silenciar seu conflito, acaba com sua própria vida.
Se vocês se calarem hoje, se não defenderem o Maomé no qual vocês acreditam contra os que o aviltam invocando-o em seu ódio do Ocidente, se vocês não tiverem a coragem de apaziguar a alma islâmica, a história contará que vocês levaram seu povo ao suicídio.


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