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São Paulo, quarta-feira, 12 de março de 2003

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ANÁLISE

ONU deve sobreviver à crise iraquiana

MARK TURNER E QUENTIN PEEL
DO "FINANCIAL TIMES"

O Conselho de Segurança (CS) da ONU enfrenta uma tempestade diplomática que pode definir a ordem internacional por muitos anos. Embora a disputa no CS diga respeito ao desarmamento do regime iraquiano, o drama tem raízes muito mais profundas.
Na realidade, diz respeito à hegemonia mundial dos EUA, a superpotência inconteste do planeta, e sua relação com seus antigos rivais e aliados: Rússia, China, Reino Unido, França e os outros países da União Européia. A questão é se a futura ordem mundial será uma ordem unipolar, dominada por um único país, ou um sistema multipolar com outros países influenciando os EUA.
A determinação do presidente George W. Bush em partir para a ação militar dividiu os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, colocando os EUA e o Reino Unido contra a França, a Rússia e a China. Dividiu os aliados americanos na Europa e dividiu os países da ONU. A decisão sobre se a ação americana deve seguir adiante com o aval da maioria do CS ou se deve fazê-lo apesar do veto explícito de um ou mais membros permanentes provavelmente determinará a atitude de Washington em relação à ONU no futuro.
De acordo com Bush, a crise gera uma escolha simples. Ou o CS demonstra a credibilidade de suas resoluções, implementando o desarmamento iraquiano, ou então, se optar contra a ação militar, fará a ONU ter o mesmo destino que a Liga das Nações, que desmoronou na véspera da 2ª Guerra.
"O Conselho terá que decidir em pouco tempo se sua palavra tem importância ou não", disse Bush. E se a resposta for "não", os EUA vão seguir adiante. "Quando o que está em jogo é a nossa segurança, não precisamos da autorização de ninguém."
Do outro lado, a França e seus aliados também avisam que o que está em jogo é a ordem mundial, mas por razões diferentes. "Qual seria a legitimidade de uma organização que desse seu aval a uma guerra que a grande maioria hoje não considera legítima?" pergunta o embaixador francês Jean-Marc de la Sablière. "Se o fizéssemos, seríamos nós que teríamos nos tornado irrelevantes."
Até mesmo os países menores vêm implorando aos membros permanentes, que têm poder de veto, para que encontrem uma posição comum. "Este é um momento de definição", avisa Luis Derbez, o chanceler do México, país no meio da divisão no CS. "A força de um sistema de segurança coletivo está em sua unidade."
Não será a primeira vez que essa unidade está em falta.
Desde 1945, a ONU é o fórum primeiro e principal no qual os países do mundo se esforçam coletivamente para manter a paz e a segurança internacionais e promover valores civilizados, por meio de regras mutuamente acordadas. No entanto, ela foi solapada pela rivalidade da Guerra Fria.
Os EUA sempre mantiveram com a ONU um relacionamento de amor e ódio. Ainda em 1946, quando a ONU instalou-se numa pista de patinação em Flushing Meadows, Nova York, o presidente Harry S. Truman prometeu uma nova era de engajamento americano, dizendo: "A população americana vê a ONU não como um recurso temporário, mas uma parceria permanente entre os povos do mundo em nome da paz e do bem-estar comum".
Nas décadas seguintes, porém, a Guerra Fria se fez sentir, na medida em que tanto os EUA quanto a URSS usaram seu poder de veto no CS para bloquear qualquer ação que pudesse ser prejudicial a seus interesses.
Mas a organização encontrou uma nova fonte de energia, quando Estados recém-independentes fizeram a agenda da ONU voltar-se aos seus problemas pós-coloniais, indo buscar apoio na Assembléia Geral para ir atrás de seus próprios objetivos. Mas críticas a seus aliados, como Israel e Turquia, e à sua própria política externa provocaram o distanciamento dos EUA, o maior contribuinte da ONU. Quando Ronald Reagan chegou à Presidência, em 1981, o Congresso bloqueou as contribuições à ONU, provocando enorme crise financeira.
Isso aconteceu quando a Guerra Fria estava chegando ao fim. Agora que ela terminou, Washington já pode determinar o relacionamento que quer ter com a organização. Em termos de poderio militar e econômico, os EUA não têm concorrente.
"Os Estados Unidos ajudaram a fundar a ONU. Queremos que a ONU seja eficaz e bem-sucedida", declarou Bush em setembro. "Nossa parceria de nações pode vencer o teste que tem pela frente ao deixar claro o que esperamos do regime iraquiano agora."
Mesmo em meio ao rancor atual, diz Tom Franck, professor de direito mundial na Universidade de Nova York, o sistema está demonstrando seu valor. "Os EUA e o Reino Unido vinham tentando, nos últimos quatro meses, convencer outros países de que existe um perigo muito sério de produção e uso de armas de destruição em massa por parte do Iraque", diz Franck. "O problema é que não conseguiram convencer a comunidade internacional."
Muitos temem que um voto pelo "não" no CS, nesta semana, possa levar os EUA a deixarem a ONU de escanteio em suas decisões futuras, reduzindo-a a pouco mais do que uma organização humanitária especial. Se o resultado da votação for o oposto, outros temem que o CS seja visto como impotente diante de uma superpotência dotada de hegemonia militar inusitada, que defende uma doutrina preventiva contra tudo e todos, disposta a defender o argumento da "mudança de regime" e outras ações preventivas sem o respaldo da ONU. A segurança coletiva significaria pouco nesse cenário, afirmam.
"Mesmo que os EUA consigam nove votos favoráveis e nenhum veto, essa vitória terá sido conquistada por meios realmente reprováveis e não irá refletir as preferências reais dos países", diz John Ruggie, ex-assessor do secretário-geral da ONU, Kofi Annan. "Não é exatamente uma grande base para a legitimidade."
São cenários dramáticos. Mas políticos e diplomatas tarimbados dizem que essas preocupações não constituem novidade nenhuma. Desde o seu nascimento, a ONU já enfrentou uma longa sequência de crises, muitas das quais ameaçavam fazê-la desabar. E toda vez a instituição se refez, evoluiu e seguiu adiante.
De fato, longe dos holofotes sempre voltados ao Conselho de Segurança, as organizações subordinadas à ONU vêm exercendo um papel cada vez mais importante no mundo em desenvolvimento e na cabeça das pessoas comuns. Seus organismos vêm construindo estradas, administrando companhias aéreas, erradicando doenças e mantendo setores econômicos inteiros em atividade.
De acordo com o professor Franck, a ONU nunca foi mais do que uma tentativa complexa e imperfeita de organizar as relações mundiais. "O fato de que os EUA podem seguir adiante [no Iraque] não prova que o sistema não está funcionando. Prova que, em tempos em que existe uma única superpotência, essa superpotência pode não obedecer às regras do jogo", diz ele.
Kofi Annan se nega a ficar alarmado. "A ONU não irá seguir o caminho da Liga das Nações. A ONU é muito, muito maior do que a crise iraquiana."
Como gostam de dizer analistas de todas as tendências, se a ONU fosse abandonada amanhã, ela teria que ser inventada outra vez no dia seguinte.


Tradução de Clara Allain


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