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ANÁLISE
ONU deve sobreviver à crise iraquiana
MARK TURNER E QUENTIN PEEL
DO "FINANCIAL TIMES"
O Conselho de Segurança (CS)
da ONU enfrenta uma tempestade diplomática que pode definir a
ordem internacional por muitos
anos. Embora a disputa no CS diga respeito ao desarmamento do
regime iraquiano, o drama tem
raízes muito mais profundas.
Na realidade, diz respeito à hegemonia mundial dos EUA, a superpotência inconteste do planeta, e sua relação com seus antigos
rivais e aliados: Rússia, China,
Reino Unido, França e os outros
países da União Européia. A questão é se a futura ordem mundial
será uma ordem unipolar, dominada por um único país, ou um
sistema multipolar com outros
países influenciando os EUA.
A determinação do presidente
George W. Bush em partir para a
ação militar dividiu os cinco
membros permanentes do Conselho de Segurança, colocando os
EUA e o Reino Unido contra a
França, a Rússia e a China. Dividiu os aliados americanos na Europa e dividiu os países da ONU.
A decisão sobre se a ação americana deve seguir adiante com o aval
da maioria do CS ou se deve fazê-lo apesar do veto explícito de um
ou mais membros permanentes
provavelmente determinará a atitude de Washington em relação à
ONU no futuro.
De acordo com Bush, a crise gera uma escolha simples. Ou o CS
demonstra a credibilidade de suas
resoluções, implementando o desarmamento iraquiano, ou então,
se optar contra a ação militar, fará
a ONU ter o mesmo destino que a
Liga das Nações, que desmoronou na véspera da 2ª Guerra.
"O Conselho terá que decidir
em pouco tempo se sua palavra
tem importância ou não", disse
Bush. E se a resposta for "não", os
EUA vão seguir adiante. "Quando
o que está em jogo é a nossa segurança, não precisamos da autorização de ninguém."
Do outro lado, a França e seus
aliados também avisam que o que
está em jogo é a ordem mundial,
mas por razões diferentes. "Qual
seria a legitimidade de uma organização que desse seu aval a uma
guerra que a grande maioria hoje
não considera legítima?" pergunta o embaixador francês Jean-Marc de la Sablière. "Se o fizéssemos, seríamos nós que teríamos
nos tornado irrelevantes."
Até mesmo os países menores
vêm implorando aos membros
permanentes, que têm poder de
veto, para que encontrem uma
posição comum. "Este é um momento de definição", avisa Luis
Derbez, o chanceler do México,
país no meio da divisão no CS. "A
força de um sistema de segurança
coletivo está em sua unidade."
Não será a primeira vez que essa
unidade está em falta.
Desde 1945, a ONU é o fórum
primeiro e principal no qual os
países do mundo se esforçam coletivamente para manter a paz e a
segurança internacionais e promover valores civilizados, por
meio de regras mutuamente acordadas. No entanto, ela foi solapada pela rivalidade da Guerra Fria.
Os EUA sempre mantiveram
com a ONU um relacionamento
de amor e ódio. Ainda em 1946,
quando a ONU instalou-se numa
pista de patinação em Flushing
Meadows, Nova York, o presidente Harry S. Truman prometeu
uma nova era de engajamento
americano, dizendo: "A população americana vê a ONU não como um recurso temporário, mas
uma parceria permanente entre
os povos do mundo em nome da
paz e do bem-estar comum".
Nas décadas seguintes, porém, a
Guerra Fria se fez sentir, na medida em que tanto os EUA quanto a
URSS usaram seu poder de veto
no CS para bloquear qualquer
ação que pudesse ser prejudicial a
seus interesses.
Mas a organização encontrou
uma nova fonte de energia, quando Estados recém-independentes
fizeram a agenda da ONU voltar-se aos seus problemas pós-coloniais, indo buscar apoio na Assembléia Geral para ir atrás de
seus próprios objetivos. Mas críticas a seus aliados, como Israel e
Turquia, e à sua própria política
externa provocaram o distanciamento dos EUA, o maior contribuinte da ONU. Quando Ronald
Reagan chegou à Presidência, em
1981, o Congresso bloqueou as
contribuições à ONU, provocando enorme crise financeira.
Isso aconteceu quando a Guerra
Fria estava chegando ao fim. Agora que ela terminou, Washington
já pode determinar o relacionamento que quer ter com a organização. Em termos de poderio militar e econômico, os EUA não
têm concorrente.
"Os Estados Unidos ajudaram a
fundar a ONU. Queremos que a
ONU seja eficaz e bem-sucedida",
declarou Bush em setembro.
"Nossa parceria de nações pode
vencer o teste que tem pela frente
ao deixar claro o que esperamos
do regime iraquiano agora."
Mesmo em meio ao rancor
atual, diz Tom Franck, professor
de direito mundial na Universidade de Nova York, o sistema está
demonstrando seu valor. "Os
EUA e o Reino Unido vinham
tentando, nos últimos quatro meses, convencer outros países de
que existe um perigo muito sério
de produção e uso de armas de
destruição em massa por parte do
Iraque", diz Franck. "O problema
é que não conseguiram convencer
a comunidade internacional."
Muitos temem que um voto pelo "não" no CS, nesta semana,
possa levar os EUA a deixarem a
ONU de escanteio em suas decisões futuras, reduzindo-a a pouco
mais do que uma organização humanitária especial. Se o resultado
da votação for o oposto, outros temem que o CS seja visto como impotente diante de uma superpotência dotada de hegemonia militar inusitada, que defende uma
doutrina preventiva contra tudo e
todos, disposta a defender o argumento da "mudança de regime" e
outras ações preventivas sem o
respaldo da ONU. A segurança
coletiva significaria pouco nesse
cenário, afirmam.
"Mesmo que os EUA consigam
nove votos favoráveis e nenhum
veto, essa vitória terá sido conquistada por meios realmente reprováveis e não irá refletir as preferências reais dos países", diz
John Ruggie, ex-assessor do secretário-geral da ONU, Kofi Annan. "Não é exatamente uma
grande base para a legitimidade."
São cenários dramáticos. Mas
políticos e diplomatas tarimbados
dizem que essas preocupações
não constituem novidade nenhuma. Desde o seu nascimento, a
ONU já enfrentou uma longa sequência de crises, muitas das
quais ameaçavam fazê-la desabar.
E toda vez a instituição se refez,
evoluiu e seguiu adiante.
De fato, longe dos holofotes
sempre voltados ao Conselho de
Segurança, as organizações subordinadas à ONU vêm exercendo um papel cada vez mais importante no mundo em desenvolvimento e na cabeça das pessoas
comuns. Seus organismos vêm
construindo estradas, administrando companhias aéreas, erradicando doenças e mantendo setores econômicos inteiros em atividade.
De acordo com o professor
Franck, a ONU nunca foi mais do
que uma tentativa complexa e imperfeita de organizar as relações
mundiais. "O fato de que os EUA
podem seguir adiante [no Iraque]
não prova que o sistema não está
funcionando. Prova que, em tempos em que existe uma única superpotência, essa superpotência
pode não obedecer às regras do
jogo", diz ele.
Kofi Annan se nega a ficar alarmado. "A ONU não irá seguir o
caminho da Liga das Nações. A
ONU é muito, muito maior do
que a crise iraquiana."
Como gostam de dizer analistas
de todas as tendências, se a ONU
fosse abandonada amanhã, ela teria que ser inventada outra vez no
dia seguinte.
Tradução de Clara Allain
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