São Paulo, quarta-feira, 12 de maio de 2004

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ARTIGO

Confie em nós

PAUL KRUGMAN
DO "NEW YORK TIMES"

Você não sabia, no fundo, que alguma coisa como Abu Ghraib acabaria por vir à tona?
Quando o mundo ficou sabendo dos abusos de prisioneiros, Bush declarou que "isso não reflete a natureza do povo americano". Ele tem razão, é claro: a grande maioria dos americanos é formada por pessoas decentes e boas. Mas o mesmo se aplica à grande maioria das pessoas em todo lugar. Se o histórico dos EUA é melhor do que o da maioria dos países, isso se deve ao nosso sistema de transparência e de freios.
Entretanto Bush, apesar de toda sua conversa sobre o bem e o mal, não acredita nesse sistema. Desde o dia em que seu governo tomou posse, seu slogan tem sido "simplesmente confie em nós". Nenhum governo desde o de Nixon (1969-74) tem se mostrado tão insistente em declarar que tem o direito de operar sem ser fiscalizado. Em razão de um senso equivocado de patriotismo, o Congresso vem cedendo às exigências da administração. Uma catástrofe moral era inevitável.
Confie em nós, simplesmente, disse John Ashcroft quando exigiu que o Congresso aprovasse o Patriot Act (leis antiterror) sem fazer perguntas. Depois de dois anos e meio, durante os quais ele prendeu e deteve em sigilo mais de mil pessoas, Ashcroft ainda não condenou nenhum terrorista.
Simplesmente confie em nós, disse Bush quando insistiu que o Iraque, que não nos tinha atacado e que não representava ameaça evidente, era o lugar ao qual era preciso levar a guerra ao terror.
Simplesmente confie em nós, disse Paul Bremer quando assumiu o comando no Iraque. Qual é a base legal da autoridade de Bremer? Poderíamos imaginar que a Autoridade Provisória da Coalizão é um braço do governo, sujeito às leis dos EUA. Mas ficamos sabendo que nenhuma lei nem qualquer decreto presidencial estabeleceu o status da autoridade. Bremer, pelo que podemos ver, não se reporta a ninguém exceto a Bush, o que faz do Iraque uma espécie de feudo pessoal.
E, finalmente: simplesmente confie em nós, disse Donald Rumsfeld no início de 2002, quando declarou que "combatentes inimigos" -termo que pode significar qualquer um que o governo resolva assim designar, inclusive cidadãos americanos- não têm direitos sob a Convenção de Genebra. Agora, pessoas em todo o mundo estão falando de um "gulag americano".
Será que altas autoridades ordenaram a tortura? Depende do sentido que se queira dar às palavras "ordenar" e "tortura". Em agosto passado, o mais alto funcionário de inteligência de Rumsfeld enviou ao Iraque o general Geoffrey Miller, comandante da prisão de Guantánamo. Miller recomendou que os guardas ajudassem os interrogadores, dando aos prisioneiros um tratamento que "criasse as condições" para "interrogatório e exploração bem-sucedidos". O que ele e seus superiores imaginaram que iria acontecer?
Em sua defesa, é preciso dizer que alguns defensores do governo estão vindo a público fazer críticas. "Trata-se de um fracasso do sistema", disse o senador republicano Lindsey Graham. Mas será que Graham, John McCain e outros parlamentares horrorizados compreendem o papel que eles próprios exerceram nesse fracasso? Ao se dobrarem diante do governo a cada passo do caminho, ao bloquear cada esforço feito para exigir que as autoridades se reportassem a alguém, eles prepararam o país para esse desastre.
Donald Rumsfeld "aceitou a responsabilidade" -algo que, aparentemente, não significa em pagar preço nenhum. E Cheney diz que "Rumsfeld é o melhor secretário da Defesa que os EUA já tiveram... Deveriam deixá-lo em paz para que faça seu trabalho". Ou seja: confiem em nós, simplesmente.


Tradução de Clara Allain


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