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ARTIGO
Confie em nós
PAUL KRUGMAN
DO "NEW YORK TIMES"
Você não sabia, no fundo, que
alguma coisa como Abu Ghraib
acabaria por vir à tona?
Quando o mundo ficou sabendo dos abusos de prisioneiros,
Bush declarou que "isso não reflete a natureza do povo americano". Ele tem razão, é claro: a grande maioria dos americanos é formada por pessoas decentes e
boas. Mas o mesmo se aplica à
grande maioria das pessoas em
todo lugar. Se o histórico dos EUA
é melhor do que o da maioria dos
países, isso se deve ao nosso sistema de transparência e de freios.
Entretanto Bush, apesar de toda
sua conversa sobre o bem e o mal,
não acredita nesse sistema. Desde
o dia em que seu governo tomou
posse, seu slogan tem sido "simplesmente confie em nós". Nenhum governo desde o de Nixon
(1969-74) tem se mostrado tão insistente em declarar que tem o direito de operar sem ser fiscalizado. Em razão de um senso equivocado de patriotismo, o Congresso vem cedendo às exigências
da administração. Uma catástrofe
moral era inevitável.
Confie em nós, simplesmente,
disse John Ashcroft quando exigiu que o Congresso aprovasse o
Patriot Act (leis antiterror) sem
fazer perguntas. Depois de dois
anos e meio, durante os quais ele
prendeu e deteve em sigilo mais
de mil pessoas, Ashcroft ainda
não condenou nenhum terrorista.
Simplesmente confie em nós,
disse Bush quando insistiu que o
Iraque, que não nos tinha atacado
e que não representava ameaça
evidente, era o lugar ao qual era
preciso levar a guerra ao terror.
Simplesmente confie em nós,
disse Paul Bremer quando assumiu o comando no Iraque. Qual é
a base legal da autoridade de Bremer? Poderíamos imaginar que a
Autoridade Provisória da Coalizão é um braço do governo, sujeito às leis dos EUA. Mas ficamos
sabendo que nenhuma lei nem
qualquer decreto presidencial estabeleceu o status da autoridade.
Bremer, pelo que podemos ver,
não se reporta a ninguém exceto a
Bush, o que faz do Iraque uma espécie de feudo pessoal.
E, finalmente: simplesmente
confie em nós, disse Donald
Rumsfeld no início de 2002, quando declarou que "combatentes
inimigos" -termo que pode significar qualquer um que o governo resolva assim designar, inclusive cidadãos americanos- não
têm direitos sob a Convenção de
Genebra. Agora, pessoas em todo
o mundo estão falando de um
"gulag americano".
Será que altas autoridades ordenaram a tortura? Depende do sentido que se queira dar às palavras
"ordenar" e "tortura". Em agosto
passado, o mais alto funcionário
de inteligência de Rumsfeld enviou ao Iraque o general Geoffrey
Miller, comandante da prisão de
Guantánamo. Miller recomendou
que os guardas ajudassem os interrogadores, dando aos prisioneiros um tratamento que "criasse as condições" para "interrogatório e exploração bem-sucedidos". O que ele e seus superiores
imaginaram que iria acontecer?
Em sua defesa, é preciso dizer
que alguns defensores do governo
estão vindo a público fazer críticas. "Trata-se de um fracasso do
sistema", disse o senador republicano Lindsey Graham. Mas será
que Graham, John McCain e outros parlamentares horrorizados
compreendem o papel que eles
próprios exerceram nesse fracasso? Ao se dobrarem diante do governo a cada passo do caminho,
ao bloquear cada esforço feito para exigir que as autoridades se reportassem a alguém, eles prepararam o país para esse desastre.
Donald Rumsfeld "aceitou a
responsabilidade" -algo que,
aparentemente, não significa em
pagar preço nenhum. E Cheney
diz que "Rumsfeld é o melhor secretário da Defesa que os EUA já
tiveram... Deveriam deixá-lo em
paz para que faça seu trabalho".
Ou seja: confiem em nós, simplesmente.
Tradução de Clara Allain
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