São Paulo, domingo, 12 de agosto de 2007

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Timbuktu, Mali, sonha ser nova Alexandria

Interesse por textos antigos faz renascer cidade que floresceu como centro comercial e cultural dos séculos 12 ao 16

África do Sul, Líbia e EUA investem na recuperação de manuscritos guardados por gerações de famílias em bibliotecas empoeiradas

Candace Feit/The New York Times
Ismaël Haïdara na biblioteca de sua família, iniciada por ancestrais que fugiram da perseguição religiosa na Espanha no século 15

LYDYA POLGREEN
DO "NEW YORK TIMES", EM TIMBUKTU, MALI

Os dedos esguios de Ismaël Diadié Haïdara estavam cerrados em torno de um tesouro que, de alguma maneira, sobreviveu durante 11 gerações -um quadrado de couro puído que contém a história dos dois ramos de sua família, um dos quais remonta aos visigodos da Espanha e o outro à mais remota origem dos imperadores songhai, que governaram Timbuktu em seu apogeu.
"Esta é a história de nossa família", ele disse, folheando com cuidado as páginas. "Foi escrita em 1519."
A empoeirada coleção de páginas frágeis e quebradiças, escritas na florida caligrafia árabe do século 16, também representa o futuro para esse entreposto que passou muito tempo esquecido. Uma retomada do interesse pelos livros antigos, preservados por séculos nas casas que se espalham pelas ruas empoeiradas de Timbuktu e em baús de couro nos acampamentos dos nômades, está despertando esperança de que Timbuktu possa uma vez mais encontrar lugar como o coração intelectual da África.
Essa cidade antiga, prisioneira das areias incansáveis do Saara, está a ponto de renascer. "Queremos construir uma Alexandria da África negra", disse Mohamed Dicko, diretor do Instituto Ahmed Baba, uma biblioteca estatal de Timbuktu. "Essa é a nossa chance de reconquistar o lugar que merecemos na história."
O governo da África do Sul está construindo uma nova sede para a biblioteca do instituto, um edifício moderno que abrigará, catalogará e digitalizará dezenas de milhares dos livros, e oferecerá, em alguns casos pela primeira vez, acesso ao seu conteúdo para pesquisadores de todo o mundo. Organizações assistenciais e governos europeus, do Oriente Médio e dos EUA doaram milhares de dólares às emboloradas bibliotecas familiares da cidade, que estão sendo convertidas em instituições de pesquisa.
O governo da Líbia planeja transformar um precário hotel de 40 quartos em um luxuoso centro de lazer com cem suítes, equipado com a única piscina de Timbuktu e dotado de espaço para conferências acadêmicas e religiosas. A Líbia também está escavando um novo canal que conduzirá as águas do rio Níger aos limites de Timbuktu.
O interesse que a cidade volta a atrair tem diversos motivos. África do Sul e Líbia estão competindo para estabelecer sua influência sobre os países africanos. A Espanha tem conexão direta com parte da história preservada na região, enquanto organizações assistenciais americanas começaram a doar dinheiro depois que Henry Gates Jr., professor de estudos africanos na Universidade Harvard, apresentou os manuscritos ao mundo em uma série de documentários para TV no final dos anos 90.
O novo capítulo na história de Timbuktu, cujo destino se tornou obscuro em meio à Idade Média, é quase tão extraordinário quanto aqueles que o precederam. A geografia que condenou a cidade à obscuridade por meio milênio, em termos de imagem popular, foi um dia a razão de sua grandeza.

Caravanas
Timbuktu foi fundada como entreposto comercial pelos nômades da região, no século 11, e mais tarde se tornou parte do Império do Mali, antes de cair sob o controle do Império Songhai. A cidade floresceu porque se localizava na confluência de rotas de comércio da era -o Saara, com caravanas que transportavam sal, tecidos, especiarias e outras riquezas, vindas do norte; e o rio Níger, que era rota para o transporte de ouro e escravos vindos do restante da África Ocidental.
Os comerciantes levaram à cidade livros e manuscritos vindos do outro lado do Mediterrâneo e do Oriente Médio, e livros eram comprados e vendidos em Timbuktu -em árabe e em idiomas locais como o songhai e o tamashek, o idioma dos tuaregues nômades.
Timbuktu no passado abrigava a Universidade Sankore, que em seu pico servia de centro para 25 mil estudiosos. Escribas conhecidos por seu talento caligráfico ganhavam a vida copiando manuscritos trazidos por viajantes. Famílias importantes acrescentavam cópias desses trabalhos às suas bibliotecas. A cidade acumulou uma extensa e eclética coleção de manuscritos.
"Temos trabalhos sobre lei islâmica, lei familiar, direitos das mulheres, direitos humanos, leis sobre gado, direitos das crianças. Todos os assuntos imagináveis estão aqui". disse Ali Imam Ben Essayouti, de uma família de imãs que preservou uma biblioteca em uma das mesquitas da cidade.
Um livro sobre práticas islâmicas, datado do século 19, oferece conselhos sobre a menstruação. Um manual médico sugere que carne de sapo é um bom tratamento para mordidas de cobra. Existem milhares de cópias do Corão, além de biografias decoradas do profeta Maomé, algumas das quais com mais de mil anos de idade.

Linhagem
Haïdara descende da família Kati, linhagem muçulmana de Toledo, Espanha. Um de seus antepassados fugiu à perseguição religiosa pelos cristãos espanhóis, no século 15, e se instalou no que agora é o Mali, levando com ele sua biblioteca. Membros da família Kati se casaram com membros da família real Songhai, e o hábito dos ancestrais de Haïdara, o de fazer anotações nas margens dos manuscritos que estivessem lendo, gerou uma abundância de informações históricas: nascimentos e mortes na família imperial, clima, históricos de posse de escravos e registros de comércio de sal e ouro.
Invasores marroquinos depuseram o Império Songhai em 1591, e os novos governantes eram hostis à comunidade de estudiosos, vistos como indóceis. Muitos deles fugiram, levando livros com eles. As rotas marítimas do oeste da África superaram em importância a velha estrada do comércio pelo deserto e pelo rio, e a cidade iniciou seu longo declínio.
Timbuktu continua a ser uma coleção de casas baixas, de barro. O acesso é difícil, e a primeira impressão sobre o lugar não é das mais favoráveis. Mas a cidade vem lentamente se recuperando.
Os manuscritos começaram a reaparecer na metade do século 20, quando o Mali conquistou a independência da França e a cidade foi declarada patrimônio cultural da humanidade pela Unesco. O governo criou um instituto que leva o nome de Ahmed Baba, o maior dos estudiosos de Timbuktu, para coligir, preservar e interpretar os manuscritos.
Abdel Kader Haïdara (que não é parente de Ismaïl Diadé Haïdara), um estudioso islâmico cuja família tem uma extensa coleção de manuscritos, criou uma organização chamada Savama-DCI, com o objetivo de preservá-los. O governo do Mali encorajou o aprendizado islâmico, que volta a florescer na cidade. "Timbuktu está renascendo. A cidade ascenderá uma vez mais", disse Abdel Kader Haïdara.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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