São Paulo, quarta-feira, 12 de outubro de 2005

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Apesar da propaganda do governo, iraquianos ignoram Constituição

KAREN MARÓN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BAGDÁ

"O texto para a República do Iraque", diz o exemplar do projeto de Constituição ao qual a Folha teve acesso e que será votado em plebiscito no próximo sábado. O texto da Carta que começou a ser distribuído uma semana atrás é subvencionado pela ONU, que se encarregou de sua impressão e distribuição, para o qual investiu mais de US$25 milhões.
Os 5,4 milhões de cópias -4 milhões em árabe, 1 milhão em curdo, 250 mil cópias em turcomano e 150 mil em siríaco- estão chegando a seus destinatários lentamente. A distribuição é feita em repartições públicas, escolas, universidades, hospitais e nos locais de distribuição de alimentos.
"Como vamos fazer para ler tudo isso em quatro dias?" se pergunta Khaled, enquanto presta atendimento num centro de comunicações na avenida Sadoum, em Nadamiya. Ele conseguiu os três exemplares que tem na escola do bairro, ontem, e vai se encarregar pessoalmente de entregar o material a seus familiares.
"A mesma coisa acontece com as eleições de janeiro. Não sabemos como será a votação, e a informação chega tarde. Antes não sabíamos em quem votar; agora não saberemos o que votar", diz o engenheiro eletrônico de 29 anos, que afirma não se filiar a nenhuma linha política, embora sua família seja xiita.
O texto de 52 páginas é acompanhado de um anexo explicativo, mas a campanha do plebiscito é marcada pelos mesmos erros que marcaram a eleição da Assembléia Geral, em janeiro passado.
A publicidade governamental incessante, na televisão e no rádio, convoca a população a "votar no Iraque", com imagens dignas de um país com realidade muito distante da iraquiana, diariamente semeada de carros-bomba, operações militares e caos generalizado. Nas ruas, estão os cartazes coloridos, repletos de imagens da bandeira nacional e de belos rostos de modelos desconhecidos, revestindo as principais ruas e avenidas da capital.
Mesmo assim, foi mínima a informação que chegou às pessoas sobre o conteúdo da Constituição, composta de 130 artigos.
A impressão do texto sofreu atrasos para que fosse possível fechar acordos de última hora entre sunitas, xiitas e curdos sobre o projeto polêmico, que aprofunda a fragmentação sectária e religiosa no Iraque.
Uma das primeiras reformas no texto foi uma modificação no artigo que previa que o Iraque deixaria de ser um Estado árabe para tornar-se um Estado islâmico. Mesmo assim, o artigo 2.1 assinala que "o islã é a religião oficial do Estado e sua fonte básica de legislação", determinando que "não poderá ser aprovada nenhuma lei que contradiga as regras estabelecidas do islã".
Juntamente com a ambigüidade dos artigos 110 e 111, que favorecerá a gestão local da receita do petróleo e do gás e os desequilíbrios territoriais, o Iraque formaria um Estado federal, o que leva a prever a divisão do país segundo critérios étnicos e religiosos.
Além das que formam a região do Curdistão, outras governadorias também poderão se constituir em regiões autônomas, com suas legislações e competências próprias, inclusive em matéria de impostos e controle da receita petrolífera (artigo 108).
Esse modelo federal satisfaz os setores xiitas, que aspiram controlar até sete províncias do centro e sul do Iraque, incluindo os recursos petrolíferos delas.
É por isso que a Constituição proposta afeta diretamente os interesses da comunidade árabe sunita, que leva adiante a campanha pelo "não", considerando que a Carta será o primeiro passo para o desmembramento do país.
No fim de semana passado, após um encontro perto da mesquita de Umm al Qora (situada na zona oeste de Bagdá e famosa sob o regime de Saddam Hussein), 21 agrupações sunitas encabeçadas pelo poderoso Conselho de Ulemás, pelo Partido Islâmico do Iraque e pelo Conselho de Diálogo Nacional emitiram um comunicado segundo o qual "esta Constituição encerra os germes da divisão do Iraque, da perda de sua identidade árabe e da espoliação de suas riquezas nacionais".
Os sunitas esperam que pelo menos 51% do eleitorado se expresse contra a Constituição provisória. Tentam para tanto conseguir o apoio de 5 milhões de pessoas nas três governadorias em que são maioria -Níneve, Anbar e Saladin- e em Bagdá. Juntas, essas áreas detêm um quarto da população do Iraque.


A argentina Karen Marón é especializada na cobertura de conflitos armados, como na Colômbia e no Oriente Médio

Tradução de Clara Allain


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