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Ex-reféns acusam Farc de crimes e tortura
Em entrevista coletiva, Clara Rojas relata drama de parto em cativeiro e afirma que guerrilha é organização criminosa
Consuelo González defende intervenção do presidente Hugo Chávez na libertação; viagem de retorno a Bogotá seria definida ontem
LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A CARACAS
Um parto cesárea feito em
condições "artesanais" no meio
da selva, um bebê com o braço
quebrado por causa da inabilidade de enfermeiros improvisados. A longa marcha forçada
pela Amazônia colombiana,
ainda mal fechados os pontos
da cirurgia.
A criança acometida de leishmaniose -parasitas que ao entrar na pele provocam dezenas
de feridas causadoras de cicatrizes marcantes no rosto, braços e pernas. A separação do filho quando ele tinha apenas oito meses. O guerrilheiro que
talvez nunca tenha sabido ser
pai do bebê e que -quem sabe- nem mais vivo esteja.
Gente acorrentada, que vive
acorrentada a postes e uns aos
outros ao longo dos anos. Uma
tentativa de fuga. A experiência
de ter sido acorrentada por alguns dias, como punição, em
companhia de tarântulas, cascavéis e de uma carcaça de caça
morta e em putrefação. Bombas, helicópteros.
Quem narra as histórias é
Clara Rojas, 44, mãe do pequeno Emmanuel (dado à luz em
2004), seqüestrada durante os
últimos seis anos pelas Farc
(Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), e por fim liberada do que a guerrilha chama de "Cárceres do Povo" na quinta-feira, em companhia da
ex-deputada Consuelo González de Perdomo, 57.
Vestida toda de cor-de-rosa,
camiseta de mangas curtas,
maquiagem nenhuma, a figura
magra e tímida de Clara, apareceu em público durante entrevista coletiva que se iniciou às
23h45 (hora de Brasília) de anteontem e entrou pela madrugada, em um auditório hotel
Gran Meliá de Caracas.
Ladeada pela mãe Clara González Rojas (que passou a maior
parte do tempo com a mão direita posta sobre a dela) e pelo
irmão Ivan, a ex-seqüestrada
acusou a guerrilha de cometer
"crimes de lesa-humanidade".
"Eu fico preocupada por eles
[as Farc] dizerem que são o
Exército do Povo, ao mesmo
tempo em que os vejo seqüestrando pessoas. Em princípio,
isso me parece mais com uma
organização delitiva, criminal."
Clara pronunciava as palavras
vagarosamente, cuidadosa.
Beijinhos e críticas
Na tarde de sexta-feira, em
longo discurso na Assembléia
Nacional, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, defendeu a retirada das Farc de listas
de organizações terroristas. Segundo Chávez, a guerrilha é
uma "força insurgente" respeitada pelos venezuelanos. Deflagrou uma tempestade de protestos entre os partidários da linha-dura de Uribe.
Ao serem entregues pelas
Farc ao ministro do Interior e
da Justiça da Venezuela, Ramón Rodriguez Chacín, em território colombiano, câmeras da
TV chavista Telesur registraram Clara e Consuelo recebendo beijos de despedida de guerrilheiras que as escoltaram até
o local de resgate. Chávez viu
no gesto "um encontro natural
entre seres humanos".
Clara usava um colar com o
retrato do filho Emmanuel e
apareceu em fotos vestindo um
colete negro, que lhe dava uma
certa aparência agressiva. Na
entrevista coletiva de ontem, o
tom dela foi outro. Em vários
momentos, a voz embargada
traía a emoção:
"Eles [os guerrilheiros] só
sorriem se lhes for ordenado. A
guerrilha não nos fala nada. É
difícil saber exatamente o que
está ocorrendo. A única interação deles conosco é do tipo "parem aqui", "mantenham silêncio", "apaguem as luzes"."
"Quando me separei de Emmanuel, que estava sofrendo
com seu braço e pela leishmaniose, era para ser por apenas
15 dias, tempo de um tratamento. Nunca mais tive notícias dele -nem adiantava perguntar-
até dezembro, quando foi
anunciada minha libertação."
"Não tenho nenhuma informação sobre o papai do bebê. É
difícil pensar em uma família
com uma pessoa com quem não
tenho a possibilidade de compartilhar nada." Antes, Clara já
havia se esquivado de responder sobre seu envolvimento
emocional com o guerrilheiro,
com quem manteve relações
supostamente consentidas.
"Acorrentaram-nos porque
tentamos fugir, eu e Ingrid [Betancourt, ex-candidata à presidência da Colômbia, de quem
Clara era assessora]. São ordens, e eles têm de cumprir,
mas é uma violação completa
da dignidade humana."
"Preocupa-me muito a saúde
de Ingrid, porque ela comia
muito pouco. Preocupa-me
muito seu desânimo. Como se
não quisesse viver."
"Como noivas"
Detalhe da entrevista foi o
afeto das reféns com o radialista Herbin Hoyos, ele mesmo
um ex-seqüestrado, que transmite há 14 anos o programa
"Vozes do Seqüestro", em que
familiares enviam notícias e
mensagens de esperança aos
cativos (o governo colombiano
calcula que hoje as Farc e o
Exército de Libertação Nacional tenham cerca de 700 pessoas em seu poder).
O programa é transmitido todas as madrugadas de domingo
por algo como 160 emissoras
colombianas. "Nós nos preparávamos como noivas para ouvir o "Vozes". Era o que mais nos
nutria", disse Clara.
Segundo Herbin, familiares
de 4.000 seqüestrados já passaram por seu programa. Ele diz
que a guerrilha permite que o
rádio seja sintonizado pelos seqüestrados "porque já se provou ser uma forma eficaz de
vencer o desalento e a depressão severa que tomam conta
dos cativos, e que pode levá-los
à morte. Muitos simplesmente
param de comer".
Pavor
A ex-deputada Consuelo
González falou logo em seguida
a Clara Rojas. Vestia branco, tinha a voz firme e parecia muito
calma. Sentou-se ao lado das filhas Maria Fernanda e Patrícia
Helena, que sorriam todo o
tempo, mesmo quando a mãe
narrava situações de tormento
físico e mental.
Consuelo defendeu a intervenção do presidente Hugo
Chávez no processo de libertação dos reféns da guerrilha.
Disse estar convencida de que
"Chávez é profundamente democrata, um respeitador dos
direitos humanos, um homem
de boa vontade".
Sobre as Farc, entretanto, o
julgamento foi rigoroso: "O fato
de privar uma pessoa de sua liberdade, de isolá-lo de sua família e do mundo é, em si mesmo, de todos os pontos de vista,
condenável e pode ser visto como uma forma de tortura." Ela
disse que viu reféns sendo obrigados a passar dias e noites
acorrentados uns aos outros,
tendo de tomar banho, alimentar-se e caminhar assim. "À
noite, dormiam com as correntes presas a postes."
"Passamos seis anos tratando de ganhar tempo ao tempo,
tratando de evitar o pensamento angustiante sobre se sairíamos ou não daquela situação.
Alan Jara [que foi governador
do departamento colombiano
de Meta seqüestrado há 6,5
anos], por exemplo, dava aulas
de inglês para quem se interessasse. Outros tomavam aulas
de russo. Havia quem jogasse
cartas. Eu li vagarosamente e
com muita atenção a história
da guerra de Gêngis Khan, que
encontrei em um acampamento guerrilheiro."
Consuelo pretende levar vida
normal daqui para frente. Mas
terá de enfrentar, por exemplo,
o pavor que desenvolveu de helicópteros. "Já liberta, vi-me
tremendo ao escutar o barulho
de hélices. É absolutamente
aterrorizante e horroroso estar
em meio a rajadas de metralhadoras atirando para todos os lados", disse, referindo-se aos
ataques das forças colombianas
contra os guerrilheiros. "Não se
sabe para onde fugir."
"Hoje estou renascendo",
disse Consuelo. "Estou voltando a viver", repetiu Clara. "Eu
vivi para reencontrar Emmanuel". O menino, agora com
três anos e oito meses, está em
poder de uma instituição de
apoio e bem-estar da família, na
Colômbia.
A viagem de volta para a Bogotá seria marcada ontem. No
colo da avó Consuelo, a pequena Maria Juliana, cansada, encerrou a coletiva, despachando
os jornalistas: "Tchau."
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