São Paulo, domingo, 13 de janeiro de 2008

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Ex-reféns acusam Farc de crimes e tortura

Em entrevista coletiva, Clara Rojas relata drama de parto em cativeiro e afirma que guerrilha é organização criminosa

Consuelo González defende intervenção do presidente Hugo Chávez na libertação; viagem de retorno a Bogotá seria definida ontem

LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A CARACAS

Um parto cesárea feito em condições "artesanais" no meio da selva, um bebê com o braço quebrado por causa da inabilidade de enfermeiros improvisados. A longa marcha forçada pela Amazônia colombiana, ainda mal fechados os pontos da cirurgia.
A criança acometida de leishmaniose -parasitas que ao entrar na pele provocam dezenas de feridas causadoras de cicatrizes marcantes no rosto, braços e pernas. A separação do filho quando ele tinha apenas oito meses. O guerrilheiro que talvez nunca tenha sabido ser pai do bebê e que -quem sabe- nem mais vivo esteja.
Gente acorrentada, que vive acorrentada a postes e uns aos outros ao longo dos anos. Uma tentativa de fuga. A experiência de ter sido acorrentada por alguns dias, como punição, em companhia de tarântulas, cascavéis e de uma carcaça de caça morta e em putrefação. Bombas, helicópteros.
Quem narra as histórias é Clara Rojas, 44, mãe do pequeno Emmanuel (dado à luz em 2004), seqüestrada durante os últimos seis anos pelas Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), e por fim liberada do que a guerrilha chama de "Cárceres do Povo" na quinta-feira, em companhia da ex-deputada Consuelo González de Perdomo, 57.
Vestida toda de cor-de-rosa, camiseta de mangas curtas, maquiagem nenhuma, a figura magra e tímida de Clara, apareceu em público durante entrevista coletiva que se iniciou às 23h45 (hora de Brasília) de anteontem e entrou pela madrugada, em um auditório hotel Gran Meliá de Caracas.
Ladeada pela mãe Clara González Rojas (que passou a maior parte do tempo com a mão direita posta sobre a dela) e pelo irmão Ivan, a ex-seqüestrada acusou a guerrilha de cometer "crimes de lesa-humanidade".
"Eu fico preocupada por eles [as Farc] dizerem que são o Exército do Povo, ao mesmo tempo em que os vejo seqüestrando pessoas. Em princípio, isso me parece mais com uma organização delitiva, criminal." Clara pronunciava as palavras vagarosamente, cuidadosa.

Beijinhos e críticas
Na tarde de sexta-feira, em longo discurso na Assembléia Nacional, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, defendeu a retirada das Farc de listas de organizações terroristas. Segundo Chávez, a guerrilha é uma "força insurgente" respeitada pelos venezuelanos. Deflagrou uma tempestade de protestos entre os partidários da linha-dura de Uribe.
Ao serem entregues pelas Farc ao ministro do Interior e da Justiça da Venezuela, Ramón Rodriguez Chacín, em território colombiano, câmeras da TV chavista Telesur registraram Clara e Consuelo recebendo beijos de despedida de guerrilheiras que as escoltaram até o local de resgate. Chávez viu no gesto "um encontro natural entre seres humanos".
Clara usava um colar com o retrato do filho Emmanuel e apareceu em fotos vestindo um colete negro, que lhe dava uma certa aparência agressiva. Na entrevista coletiva de ontem, o tom dela foi outro. Em vários momentos, a voz embargada traía a emoção:
"Eles [os guerrilheiros] só sorriem se lhes for ordenado. A guerrilha não nos fala nada. É difícil saber exatamente o que está ocorrendo. A única interação deles conosco é do tipo "parem aqui", "mantenham silêncio", "apaguem as luzes"."
"Quando me separei de Emmanuel, que estava sofrendo com seu braço e pela leishmaniose, era para ser por apenas 15 dias, tempo de um tratamento. Nunca mais tive notícias dele -nem adiantava perguntar- até dezembro, quando foi anunciada minha libertação."
"Não tenho nenhuma informação sobre o papai do bebê. É difícil pensar em uma família com uma pessoa com quem não tenho a possibilidade de compartilhar nada." Antes, Clara já havia se esquivado de responder sobre seu envolvimento emocional com o guerrilheiro, com quem manteve relações supostamente consentidas.
"Acorrentaram-nos porque tentamos fugir, eu e Ingrid [Betancourt, ex-candidata à presidência da Colômbia, de quem Clara era assessora]. São ordens, e eles têm de cumprir, mas é uma violação completa da dignidade humana."
"Preocupa-me muito a saúde de Ingrid, porque ela comia muito pouco. Preocupa-me muito seu desânimo. Como se não quisesse viver."

"Como noivas"
Detalhe da entrevista foi o afeto das reféns com o radialista Herbin Hoyos, ele mesmo um ex-seqüestrado, que transmite há 14 anos o programa "Vozes do Seqüestro", em que familiares enviam notícias e mensagens de esperança aos cativos (o governo colombiano calcula que hoje as Farc e o Exército de Libertação Nacional tenham cerca de 700 pessoas em seu poder).
O programa é transmitido todas as madrugadas de domingo por algo como 160 emissoras colombianas. "Nós nos preparávamos como noivas para ouvir o "Vozes". Era o que mais nos nutria", disse Clara.
Segundo Herbin, familiares de 4.000 seqüestrados já passaram por seu programa. Ele diz que a guerrilha permite que o rádio seja sintonizado pelos seqüestrados "porque já se provou ser uma forma eficaz de vencer o desalento e a depressão severa que tomam conta dos cativos, e que pode levá-los à morte. Muitos simplesmente param de comer".

Pavor
A ex-deputada Consuelo González falou logo em seguida a Clara Rojas. Vestia branco, tinha a voz firme e parecia muito calma. Sentou-se ao lado das filhas Maria Fernanda e Patrícia Helena, que sorriam todo o tempo, mesmo quando a mãe narrava situações de tormento físico e mental.
Consuelo defendeu a intervenção do presidente Hugo Chávez no processo de libertação dos reféns da guerrilha. Disse estar convencida de que "Chávez é profundamente democrata, um respeitador dos direitos humanos, um homem de boa vontade".
Sobre as Farc, entretanto, o julgamento foi rigoroso: "O fato de privar uma pessoa de sua liberdade, de isolá-lo de sua família e do mundo é, em si mesmo, de todos os pontos de vista, condenável e pode ser visto como uma forma de tortura." Ela disse que viu reféns sendo obrigados a passar dias e noites acorrentados uns aos outros, tendo de tomar banho, alimentar-se e caminhar assim. "À noite, dormiam com as correntes presas a postes."
"Passamos seis anos tratando de ganhar tempo ao tempo, tratando de evitar o pensamento angustiante sobre se sairíamos ou não daquela situação. Alan Jara [que foi governador do departamento colombiano de Meta seqüestrado há 6,5 anos], por exemplo, dava aulas de inglês para quem se interessasse. Outros tomavam aulas de russo. Havia quem jogasse cartas. Eu li vagarosamente e com muita atenção a história da guerra de Gêngis Khan, que encontrei em um acampamento guerrilheiro."
Consuelo pretende levar vida normal daqui para frente. Mas terá de enfrentar, por exemplo, o pavor que desenvolveu de helicópteros. "Já liberta, vi-me tremendo ao escutar o barulho de hélices. É absolutamente aterrorizante e horroroso estar em meio a rajadas de metralhadoras atirando para todos os lados", disse, referindo-se aos ataques das forças colombianas contra os guerrilheiros. "Não se sabe para onde fugir."
"Hoje estou renascendo", disse Consuelo. "Estou voltando a viver", repetiu Clara. "Eu vivi para reencontrar Emmanuel". O menino, agora com três anos e oito meses, está em poder de uma instituição de apoio e bem-estar da família, na Colômbia.
A viagem de volta para a Bogotá seria marcada ontem. No colo da avó Consuelo, a pequena Maria Juliana, cansada, encerrou a coletiva, despachando os jornalistas: "Tchau."


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