São Paulo, domingo, 13 de março de 2011

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LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

Não pode ser mera coincidência


"Inside Job", Oscar de melhor documentário, é uma reportagem precisa da crise financeira global

A CARICATURA é a farsa que precede e anuncia a tragédia. "Inside job", ganhador do Oscar de melhor documentário, é uma reportagem clara, precisa e bem estruturada da crise financeira global de 2008. É um filme ao qual o espectador assiste com prazer misturado com indignação.
Começa contando a história da crise da Islândia, um pequeno país de 380 mil habitantes no meio do Atlântico Norte cujos bancos entraram em especulação financeira desenfreada, com pleno apoio dos economistas neoliberais, e ficaram devendo quase cem vezes seu capital.
Some-se a isto sua estratégia de crescimento com poupança externa que levou o deficit em conta corrente a 16% do PIB, e então entenderemos por que o país quebrou violentamente, com grande prejuízo para sua população.
A Islândia foi a caricatura do sistema financeiro mundial apoiado pela teoria econômica ortodoxa, da mesma forma que no Chile a brutal crise financeira que encerrou os nove primeiros anos do governo Pinochet e seus Chicago boys (1973-81) foi o trailer caricatural dos 30 Anos Neoliberais do Capitalismo.
Estes começaram em 1979 com a eleição de Margaret Thatcher na Grã Bretanha, contaram com o apoio firme dos economistas ortodoxos, resultaram em casos de fraude generalizada, documentada de forma impiedosa no filme, e, afinal, produziram a crise financeira que o globo conheceu em 2008.
Conheço muitos economistas neoclássicos e neoliberais que são impolutos. Mas há uma relação entre o aumento da instabilidade financeira, da especulação e da corrupção e o predomínio nas universidades dessa teoria econômica neoclássica ou ortodoxa.
Foi essa teoria, foram o modelo do equilíbrio geral e a teoria das expectativas racionais que estão no seu núcleo duro, que serviram de justificação "científica" para o neoliberalismo. A ideologia neoliberal dos mercados autorregulados e da liberalização e desregulamentação geral do sistema econômico que abriu espaço para fraudes de todo tipo foi "legitimada" pela teoria ortodoxa. Foi essa teoria que fundamentou o neoliberalismo.
Este fato é significativo, mas ainda não é suficiente para que compreendamos a relação entre a teoria e a fraude. Afinal uma teoria científica tem um compromisso com a verdade que, em princípio, a defenderia contra a corrupção.
Mas o que dizer se essa teoria não tiver compromisso com a verdade, ou seja, com a sua conformidade com o real? Se essa teoria for apenas um castelo no ar hipotético-dedutivo baseado em alguns axiomas sem validade? E se o principal desses axiomas for o de que todo homem só defende seus próprios interesses não tendo compromisso com o interesse público?
Não há, portanto, nessa teoria compromisso com a verdade, nem com a moralidade, apenas com a consistência lógica e com o autointeresse. Sei que nem tudo que é falso e autocentrado é imoral, mas a imoralidade está sempre associada à mentira e ao egoísmo.
"Inside job" mostra essa imoralidade de forma viva e definitiva. E mostra que quem a justifica são sempre economistas que ensinam essa teoria sem compromisso com a realidade ou com o interesse público. Definitivamente, a correlação entre o que se ensina e o que se pratica não pode ser mera coincidência.


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