São Paulo, domingo, 13 de junho de 2004

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GUERRA AO TERROR

Para o ugandense Mamdani, projeto contra a URSS estimulou terroristas e ensejou o surgimento da Al Qaeda

Especialista liga Reagan ao terror atual

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

A rede terrorista que o governo de George W. Bush busca destruir é a conseqüência direta da "rede de libertadores" criada pela administração do presidente Ronald Reagan (1981-89) para combater a invasão soviética do Afeganistão (1979-89). Financiada pelos EUA, essa rede possibilitou ao saudita Osama bin Laden montar e treinar a Al Qaeda.
A afirmação é do ugandense Mahmood Mamdani, professor de administração pública na Universidade Columbia (EUA), diretor de seu Instituto de Estudos Africanos e autor de, entre inúmeros outros livros, "Good Muslim, Bad Muslim: America, the Cold War and the Origins of Terror" (bom muçulmano, mau muçulmano: América, a Guerra Fria e as origens do terror).
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por e-mail, à Folha.

Folha - Analistas ligam o aumento do terrorismo a uma corrente da cultura islâmica e às transformações pós-Guerra Fria. O sr. aponta outras causas, não é?
Mahmood Mamdani -
Meu argumento se baseia numa análise histórica do final da Guerra Fria. Depois da derrota americana no Vietnã, passou a existir uma forte oposição a intervenções internacionais dos EUA. A resposta de [Henry] Kissinger [ex-secretário de Estado dos EUA, 1973-77] ao novo contexto internacional foi recorrer à guerra por procuração. Inicialmente, isso ficou evidente no mesmo ano em que a Guerra do Vietnã chegou ao fim, 1975.
Trata-se do ano em que o poder colonial português entrou em colapso. E o centro de gravidade da Guerra Fria se moveu para a África meridional. Incapaz de intervir diretamente, a América procurou grupos que pudessem fazê-lo em seu lugar. Na transição que levou à independência de Angola, Kissinger deu uma procuração informal à África do Sul. Mas a intervenção ficou desacreditada quando a notícia se tornou pública.
Essa estratégia ganhou, posteriormente, valor ideológico, tornando-se um imperativo religioso contra o "império do mal" [URSS] para o governo Reagan. Se observarmos sua política externa, veremos que Reagan encorajou e apoiou, na Guerra Fria, redes e movimentos terroristas não-estatais da África meridional à América Central e à Ásia central.
Essa história teve seu ápice com o aparecimento de redes terroristas islâmicas ligadas à guerra santa afegã contra os soviéticos.

O sr. poderia dar mais exemplos de guerras por procuração financiadas pelos EUA?
Mamdani -
O governo Reagan chamou sua aliança com a África do Sul do apartheid de "engajamento construtivo". Tratava-se de um guarda-chuva político sob o qual o governo segregacionista da África do Sul criou e sustentou o primeiro movimento genuinamente terrorista da África, que atacava sobretudo alvos civis com o objetivo de espalhar o medo. Esse movimento puramente terrorista se chamava Renamo [Resistência Nacional de Moçambique].
A responsabilidade dos EUA pelo desenvolvimento da Renamo foi indireta: sem a cobertura política providenciada pelo governo Reagan, teria sido impensável que a África do Sul do apartheid apoiasse abertamente um movimento terrorista num outro país africano. Ao mesmo tempo, a América de Reagan estava envolvida na criação de um movimento terrorista na Nicarágua.
O elo entre ele e os chamados "Contras" da Nicarágua era uma reprodução do existente entre o governo segregacionista da África do Sul e a Renamo. E os métodos de ambos eram parecidos.
O terceiro e mais importante caso de guerra por procuração ocorreu por conta da criação de uma guerra santa internacional contra a invasão soviética do Afeganistão. Reagan não estava preocupado com o nacionalismo afegão, no entanto procurava abertamente extremistas islâmicos internacionais que estivessem interessados em travar a guerra até seu final, não concordassem com a realização de negociações e quisessem só "sangrar os brancos soviéticos".
Indubitavelmente, a rede de terror que Bush busca identificar e destruir hoje é exatamente a conseqüência direta da "rede de libertadores" financiada pelo governo Reagan na década de 80.

Folha - Alguns especialistas dizem que, deixando de lado as razões religiosas do terror, o sr. não detecta a causa de alguns conflitos. Qual é sua reação à crítica?
Mamdani -
Não negligencio a importância da cultura nem a da religião. Só sou contrário à idéia de que o terrorismo político é necessariamente fruto de certas tendências culturais. Trata-se de algo bastante conveniente porque proporciona a seus defensores a possibilidade de ignorar as relações e o momento histórico dos quais o terrorismo é, sem dúvida, fruto.
Em meu livro, mostro que uma tendência que põe a violência no centro da ação política surgiu no islã político com os escritos de [Mawlana Sayyid Abul Ala al] Mawdudi, publicados no Paquistão, na década de 60. Contudo essa tendência era ideológica. Como base de uma organização política, era marginal. Mesmo ideologicamente, não houve no islã político um crescimento linear dos debates sobre o tema.
Ora, como uma tendência que era marginal pôde ocupar o centro da cena apenas duas décadas depois? Como explicar uma mudança radical de estratégia, já que a tentativa de criar um movimento maciço de muçulmanos comuns para mudar o mundo foi deixada para trás em benefício da criação de pequenos grupos conspiradores que usavam a linguagem da religião para evitar uma contestação popular a seu objetivo de tomar o poder?
Não encontrei a resposta na tendência terrorista do islã político, mas em sua aliança com uma administração americana que também revestia seu vocabulário político de um tom religioso.

Folha - Há, portanto, um aspecto violento em parte da cultura islâmica? Isso explica o wahabismo?
Mamdani -
Acabei de explicar o desenvolvimento histórico desse aspecto. Uma explicação mais ampla exporia como essa tendência se ancorou ideologicamente no desenvolvimento unidimensional da noção de jihad.
Inicialmente, ao esvaziar o jihad mais amplo, a luta contra a própria fraqueza, e aumentar o valor do jihad mais estreito, a luta contra a opressão interna -islâmica ou não. E, em seguida, ao limitar o jihad a um esforço que deve ser empreendido por um grupo pequeno e conspirador.
Todavia seria um erro ligar a tendência terrorista existente no islã político ao wahabismo ou a qualquer outra perspectiva religiosa. O wahabismo é um movimento cultural e religioso puritano, não uma ideologia de ação política. Discordo daqueles que confundem movimentos culturais ou contraculturais com o terrorismo.
O fundamentalismo religioso -cristão, judaico, hindu, budista ou muçulmano- não abre caminho necessariamente para o terror político. É lógico, no entanto, que não nego que o mundo tenha visto a aparição de movimentos terroristas ou genocidas que fazem uso da linguagem hipócrita do fundamentalismo religioso. Por outro lado, é claro que, quando a linguagem política dá alento a um projeto político e molda sua ação, ela deve ser analisada como parte de um projeto político.

Folha - À luz de sua tese, qual foi o papel dos EUA na ascensão de Osama bin Laden e na de seu braço direito, Ayman al Zawahiri?
Mamdani -
Eles não foram criados pelo EUA, porém foi o projeto americano no Afeganistão durante a invasão soviética que fez deles líderes de uma rede terrorista. Foi esse projeto dos EUA que recrutou, treinou e organizou essa rede de terror, que deu a seus membros uma noção de consciência de grupo e a seus líderes a idéia de que sua missão era mudar o mundo por meio do terrorismo.



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