São Paulo, Domingo, 13 de Junho de 1999
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HISTÓRIA
Sérvios podem perder Kosovo pela quarta vez, e Albânia tende a crescer com uma instabilidade preocupante
"Grande Sérvia" ainda é projeto na região

NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas


A retirada das tropas sérvias de Kosovo, que deverá ser seguida pelo retorno da população albanesa expulsa e, após o estabelecimento ali de um protetorado internacional, pela independência da Província, que provavelmente se unirá à Albânia vizinha, representa, para a Sérvia, a quarta perda desse território.
Os sérvios, que chegaram aos Bálcãs no século 4 ou 5, formaram, sob a liderança da dinastia Nemanjic, no século 12, um poderoso reino medieval, que atingiu seu apogeu dois séculos depois, pouco antes de começar a ser obliterado pelo avanço dos turcos otomanos. O centro desse reino era Kosovo, onde os Nemanjic ergueram monumentos, construíram mosteiros e estabeleceram, em Pec, o patriarcado de sua Igreja (ortodoxa).
A derrota em face dos otomanos, em 1389, na batalha de Kosovo Polje (Campo dos Melros, próximo a Pristina), marcou o declínio da Sérvia medieval, o princípio de quatro séculos de dominação muçulmana e tornou-se um episódio tão traumático para seus habitantes quanto Alcácer Quibir foi para os portugueses.


O complexo de vitimização leva os sérvios a crer que sempre perdem na paz

Essa derrota tem sido desde então lamentada num ciclo de baladas épicas que está no centro da cultura de um povo que passou a se ver como herói e como vítima, pois acreditava ter sacrificado sua independência e grandeza para proteger a cristandade do Islã.
Apesar de se libertarem do Império Otomano em 1815, os sérvios só reconquistaram Kosovo nas guerras balcânicas de 1912/13, para perdê-lo, em 1914, no curso da Primeira Guerra Mundial, para as tropas austro-húngaras.
Durante os séculos de ocupação otomana, os turcos privilegiaram os albaneses islamizados e a repressão a sucessivas revoltas dos sérvios ortodoxos levou-os a migrar para outras regiões, como a Vojvodina, que pertencia aos húngaros, ou a Krajina, na atual Croácia, e seu centro de gravidade se deslocou para Belgrado.
Neste século, Kosovo já era majoritariamente albanesa e a política opressiva dos sérvios, quando o retomaram no final da Primeira Guerra, só contribuiu para indispor ainda mais os albaneses com a nação eslava na qual foram incluídos a contragosto. A Província foi novamente perdida, em 1941, com a ocupação, na Segunda Guerra, da Iugoslávia pelas potências do Eixo, e depois reconquistada em 44/45.
As perdas humanas na Primeira e na Segunda Guerra, que foi também uma horrenda guerra civil entre partisans comunistas, nacionalistas sérvios (tchétniks) e fascistas croatas (ustrashas), acentuou o sentimento de vitimização dos sérvios, já fortalecido no século passado pela pressão da Áustria-Hungria que se apossara da Bósnia-Herzegóvina, levando-os a acreditar que, "embora sempre ganhassem na guerra, perdiam na paz".
O complexo de vitimização é comum na Europa Central e Oriental. A Polônia, eliminada do mapa no fim do século 18 e ocupada pela Rússia, Prússia e Áustria, considerava-se o "Cristo entre as nações". Os húngaros reclamavam da dominação austríaca e, depois, do desmembramento de seu país, em 1920, pelo Tratado de Trianon.
Os tchecos denunciavam a opressão austríaca, e os eslovacos, primeiro a húngara e depois a tcheca. Os alemães, que entraram na Primeira Guerra achando-se desfavorecidos na partilha colonial da África e da Ásia, atribuíram sua derrota a tipo de traição bolchevique/judaica e iniciaram a guerra seguinte lembrando a injustiça do Tratado de Versalhes.
Como em tantos outros casos, os traumas sérvios se associavam a aspirações redentoras. Desde sua independência, a Sérvia se viu como agente de dois processos mais ou menos paralelos: a unificação dos territórios habitados por sérvios e a reunião dos eslavos do sul (sérvios e macedônios ortodoxos, croatas e eslovenos católicos, bósnios muçulmanos, mas não os búlgaros ortodoxos) numa só nação.
A criação, após a Primeira Guerra, do Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos (logo rebatizado como Iugoslávia) pareceu ser a concretização simultânea de ambos os projetos. Mas a incorporação ao país de populações não eslavas, como os albaneses do Kosovo e os húngaros da Vojvodina (ressentida pela Hungria) bem como o desentendimento que surgiu imediatamente entre sérvios e croatas garantiram uma contínua instabilidade, que veio à tona violentamente entre 41-45 e a partir de 89.
A destruição da Iugoslávia nesta década resultou, entre outras razões, do reconhecimento por parte de Milosevic da inviabilidade de preservar o projeto maior (a união dos eslavos do sul) e de sua tentativa de implementar o menor, ou seja, a unificação dos territórios etnicamente sérvios, o projeto da Grande Sérvia.
A concretização deste, porém, chocava-se com o projeto de independência e unificação territorial da Croácia e com a oposição de muçulmanos e croatas da Bósnia a se tornarem minoria numa Sérvia ampliada. O Exército croata, armado e treinado pelos americanos, expulsou a população sérvia da Krajina, enquanto a Otan revertia a expansão sérvia na Bósnia.
O pior revés para os sérvios, no entanto, é a perda de Kosovo, devido não tanto à provável expulsão da minoria de seus conterrâneos que ainda viviam na Província, quanto à perda de monumentos, mosteiros e de toda uma região carregada de significado emocional e histórico.
As chances de se criar uma Grande Sérvia diminuem com a saída forçada das diásporas sérvias da Croácia e de Kosovo, mas continuam presentes, embora num território menor, pois é provável que a parte da Bósnia controlada por sérvios acabe se unindo à Sérvia.
Os croatas, que realizaram a maior parte de suas ambições territoriais, continuam desejosos de incorporar a seu país boa parte da Herzegóvina habitada por seus conterrâneos étnicos.


Há a preocupação dos europeus com o crescimento de um país miserável nos Bálcãs

No momento, a etnia que emerge como nova vitoriosa é a dos albaneses, cujos desejos de criar uma Grande Albânia estão cada vez mais próximos da concretização.
Este, porém, também envolve problemas, como a associação da guerrilha albanesa tanto com o crime organizado quanto com ideologias autoritárias, a divisão dos albaneses em etnias rivais, o caos político, social e econômico em que se encontra a própria Albânia e a numerosa minoria albanesa da Macedônia que, desejosa de secessão, tende a desestabilizar ainda mais esse país.
Finalmente, há a mal disfarçada preocupação dos europeus diante do crescimento de um país muçulmano miserável e instável numa península problemática.


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