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ARTIGO
Apocalipse cedo
LUIZ ALBERTO MONIZ BANDEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Por que a Coréia do Norte
realizou seu primeiro teste nuclear? Por que o Irã insiste em
desenvolver a tecnologia para
produzir urânio enriquecido,
matéria-prima com que se pode construir um artefato nuclear? Antes de condenar a Coréia do Norte e o Irã, como os
EUA fazem, e levar o Conselho
de Segurança a aprovar sanções, é necessário, preliminarmente, examinar os fatores que
induziram esses dois países a
rechaçar a política de não-proliferação de armamentos nucleares. Não é difícil apontar o
responsável pela desordem internacional que nenhuma potência parece capaz de conter.
Em janeiro de 2002, quatro
meses após os atentados de 11
de setembro, George W. Bush,
no discurso sobre o Estado da
União, acusou o Iraque, o Irã e a
Coréia do Norte de serem aliados dos terroristas e de constituírem o "eixo do mal" e ameaçarem a paz do mundo. Ao mesmo tempo, o Pentágono desenvolvia planos de contingência
para o emprego preventivo de
armas atômicas contra pelos
menos sete Estados -China,
Rússia, Iraque, Coréia do Norte, Irã, Líbia e Síria-, cinco dos
quais não possuíam armas nucleares. Naturalmente, se qualquer outro país estivesse a planejar o desenvolvimento de novas armas nucleares e contemplando a possibilidade de ataques preventivos contra uma
lista de Estados não-nucleares,
Washington com certeza qualificá-lo-ia como "dangerous rogue state", isto é, um "perigoso
Estado irresponsável", conforme o próprio "New York Times" comentou,
O presidente George W.
Bush adotou uma doutrina de
segurança nacional, baseada na
ameaça de ataques prévios,
conforme planos elaborados,
em 1992, e em 2000, pelos neo-conservadores do Partido Republicano, que pretendiam realizar o Projeto do Novo Século
Americano, cujo programa
consistia em aumentar os gastos com defesa, fortalecer os
vínculos democráticos e desafiar os "regimes hostis aos interesses e valores" americanos,
promover a "liberdade política"
em todo o mundo, e aceitar para os EUA o papel exclusivo em
"preservar e estender uma ordem internacional amigável à
nossa segurança, nossa prosperidade e nossos princípios".
Diante de tais circunstâncias,
a Coréia do Norte sentiu-se
ameaçada e decidiu desenvolver seu programa para a obtenção de armas de modo que pudesse dispor de um elemento
dissuasório contra qualquer
possível ataque dos EUA. George W. Bush suspendeu então o
acordo, intermediado, em 1994,
por Jimmy Carter, que permitira ao governo do presidente
Bill Clinton conseguir, diplomaticamente, que Kim Jong-il,
o ditador da Coréia do Norte,
interrompesse seu programa
nuclear, em troca do fornecimento anual de 500 mil toneladas de óleo, por ano, e da ajuda
à construção de dois reatores
nucleares para fins pacíficos,
compromisso, aliás, não cumprido pelos EUA.
Àquele tempo, a Coréia do
Norte já havia conseguido produzir seu primeiro carregamento de urânio, graças ao reator de 5 megavolts, em Yongbyon, e tinha condições para fabricar uma ou duas bombas nucleares. E a decisão de Bush de
acabar o acordo alcançado na
administração de Clinton reacendeu as tensões na região e
interrompeu o processo de paz
entre a Coréia do Norte e a Coréia do Sul. Entretanto, ante os
preparativos dos EUA para atacar o Iraque, usando como pretexto a suposição de que Saddam Husseim buscava obter armas de destruição em massa,
Kim Jong-il inferiu que a Coréia do Norte, como parte do
"axis of evil", seria a próxima vítima. Entendeu que nem mesmo desarmando-se, renunciando ao projeto de produzir
armas nucleares e permitindo a
entrada dos inspetores da
AIEA [agência nuclear da
ONU], evitaria a guerra, pois os
EUA, sem respeitar o Tratado
de Não-Proliferação das Armas
Nucleares, continuavam a produzir os mais sofisticados artefatos nucleares.
Como pode agora o presidente George W. Bush pretender
que a Coréia do Norte e o Irã
respeitem resoluções do Conselho de Segurança da ONU?
Ele mesmo, George W. Bush,
não desrespeitou o Conselho
de Segurança e determinou
unilateralmente a invasão do
Iraque, depois de declarar que a
ONU seria "irrelevante" se não
atendesse ao propósito dos
EUA? Esta atitude refletiu o
pensamento da extrema-direita americana, que desprezava a
ONU, como um organismo sem
consistência, deteriorado pela
disparidade de objetivos e dedicado a apaziguar ao invés de
por fim às ameaças à paz e à segurança.
Não sem razão, Robert
McNamara, ex-secretário de
Defesa nos governos de John
Kennedy e Lydon Johnson,
exortou os EUA, no artigo
"Apocalypse Soon" publicado
pela revista "Foreign Policy", a
cessar seu estilo de Guerra
Fria, confiando nas armas nucleares como instrumento de
política exterior. E declarou
que, apesar do risco de parecer
simplista e provocativo, ele caracterizaria a atual política de
armas nucleares como "imoral,
ilegal, militarmente desnecessária e terrivelmente perigosa".
Segundo ponderou, o risco de
um lançamento acidental ou
inadvertido de um artefato nuclear era inaceitavelmente alto,
e a administração de Bush, insistindo em manter o arsenal
nuclear como o principal suporte de seu poder militar, estava a erodir as normas internacionais que haviam limitado
a proliferação das armas nucleares e materiais físseis por
50 anos.
LUIZ ALBERTO MONIZ BANDEIRA é cientista
político, professor titular (aposentado) da Universidade de Brasília e autor de várias obras, entre as quais "Formação do Império Americano
(Da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque)", que lhe valeu ser eleito pela União Brasileira de Escritores, com o patrocínio da Folha, Intelectual do Ano 2005
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