São Paulo, domingo, 13 de novembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

"Gangsta rap" em francês

O predomínio de elementos do "gangsta rap" no modo de agir dos jovens franceses rebeldes evidencia a pasteurização da contracultura, esvaziando-a de sentido

DAVID BROOKS
DO "NEW YORK TIMES"

Depois do 11 de Setembro, todo mundo sabia que haveria um debate em torno do futuro do islã. O que não sabíamos, porém, é que ele seria travado entre Osama bin Laden e Tupac Shakur.
No entanto parecem ser essas as alternativas de estilo de vida abertas aos homens jovens, muçulmanos e pobres em lugares como França, Reino Unido e possivelmente no resto do mundo. Alguns jovens altamente alienados e fanáticos se engajam no islã radical de Bin Laden. Mas a maioria encontra o caminho do respeito próprio, adotando as poses e a visão de mundo do hip-hop e do "gangsta rap" americanos (subgênero do hip-hop cujas letras tratam da vida dos criminosos e membros de gangues dos guetos urbanos americanos).
Uma das coisas que chamam a atenção nas cenas que temos assistido na França é até que ponto os agitadores assimilaram a cultura do hip-hop e do rap. Não é apenas o fato de adotarem os mesmos gestos de mãos dos rappers americanos, usarem as mesmas roupas e os mesmos colares e ficarem sentados por aí ouvindo o mesmo tipo de som em alto volume em seus carros. É também que eles parecem ter adotado as mesmas poses de masculinidade exagerada, as mesmas atitudes em relação às mulheres, ao dinheiro e à polícia, e reproduzido o mesmo tipo de cultura de gangues, as mesmas visões românticas sobre traficantes armados.
Em uma era globalizada, talvez seja inevitável que a cultura da resistência também se globalize. O que estamos vendo é o que Mark Lilla, da Universidade de Chicago, descreve como a cultura universal dos miseráveis do mundo. As imagens, os modos e as atitudes do hip-hop e do "gangsta rap" são tão poderosos que estão exercendo um efeito hegemônico em várias partes do mundo. Hoje, para os jovens pobres, marginalizados e revoltados, a vida nos guetos americanos tal como ela é retratada nos vídeos de rap, define o que significa ser oprimido. A resistência "gangsta" funciona como exemplo mais convincente de como rebelar-se contra a opressão.
Esse fenômeno deixa claro que, apesar de tudo o que se fala sobre a hegemonia cultural americana, a hegemonia contracultural americana sempre foi maior. Os heróis rebeldes da contracultura exercem mais influência em todo o mundo do que as imagens convencionais da Disney e do McDonald's. É o nosso insulto final aos antiamericanos: somos nós quem definimos como se pode ser antiamericano. Os estrangeiros que nos atacam se vêem reduzidos a imitar nossos próprios clichês.
Quando o rap primeiro chegou à França, o cenário nesse país era dominado por rappers americanos. Hoje, porém, os bairros periféricos imigrantes já produzem seus astros próprios, que cantam em sua própria língua. As letras do rap francês de hoje lembram as letras do "gangsta rap" americano de cinco ou dez anos atrás, quando era mais comum expressar fantasias sobre assassinatos de policiais e estupros coletivos.
A maioria das letras é do tipo que não pode ser reproduzido neste jornal, mas dá para se ter uma idéia com base em um trecho de uma canção do Bitter Ministry: "Mais uma mulher é espancada / Esta se chama Brigitte / Ela é mulher de um tira". Ou então a partir deste trecho tirado do célebre álbum "PolitiKment IncorreKt", de Mr. R: "A França é uma cachorra. Você tem que tratá-la como puta, cara! Meus negões, meus árabes, nosso playground é a rua que tiver mais armas".
A pose do "gangsta rap" francês também é conhecida. Ela tem em seu cerne a imagem do homem violento, forte e hipermacho que fala alto para afirmar sua dominância e exigir respeito. O "gangsta" é um criminoso contracultural corajoso. Ele não sente nada exceto revolta com as instituições da sociedade -o Estado e as escolas. Ele deixa clara sua força cruel, dominando as mulheres.
Em outras palavras, o que estamos vendo na França já será conhecido de qualquer pessoa que tenha assistido à ascensão do "gangsta rap" nos EUA. Pega-se uma população de jovens oprimidos pelo racismo e que têm oportunidades limitadas pela frente e se apresenta a eles uma cultura que os encoraja a tornar-se exatamente o tipo de pessoas que a sociedade preconceituosa acha que eles são. E, depois, chama-se a isso auto-afirmação orgulhosa, tomar posse de seu próprio poder. Pegam-se homens que, para a polícia, já são suspeitos em função de sua cor, e se romantiza e encoraja a criminalidade entre eles, para que passem a ser de fato desprezados e maltratados. Incentiva-se neles a idéia de desafiar a opressão, aderindo à autodestruição.
Nos EUA, pelo menos, o "gangsta rap" é uma espécie de brincadeira. O fã do "gangsta rap" acaba entrando na faculdade. Na França, porém, os obstáculos à ascensão social são maiores. O preconceito é mais impermeável, e o mercado de trabalho, mais rígido. Realmente não existe saída para esses jovens.


Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: No subúrbio, ar pacífico esconde tensão constante
Próximo Texto: Artigo: Todos devíamos aprender com a França
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.