São Paulo, domingo, 14 de março de 2004

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ARTIGO

Esse é o 11 de setembro da Europa?

TIMOTHY GARTON ASH

Os atentados em Madri deveriam ser o 11 de Setembro europeu. Mas será que nós, europeus de outros países, nos sentimos realmente atingidos? Ou respondemos de maneira mais espontânea e emotiva quando as vítimas estavam em Nova York? E, se esse foi o 11 de Setembro da Europa, o que a Europa fará a respeito?
Nesse dia de horror, o rei da Espanha discursou ao seu povo na televisão, em pé diante de uma bandeira espanhola. Ele falou sem desenvoltura, mas, ainda assim, de forma comovida, oferecendo "um abraço repleto de amor e tristeza" aos familiares das vítimas. Ele falou à sua nação, de sua nação, pela sua nação. Não havia bandeira européia à vista. E no entanto nós, como irmãos europeus, talvez sintamos não só comoção com o discurso dele, mas também que o ataque é parte de nossa história. Temos em cena, afinal, o rei que ajudou a conduzir a Espanha da ditadura para a democracia e, depois, 23 anos atrás, salvou a democracia espanhola de um golpe militar praticamente sem ajuda. Aquele, como esse, foi um evento europeu, parte de nossa história e de nosso futuro em comum.
E o que o ataque significa para a "guerra contra o terrorismo" em todo o mundo, proclamada pelo presidente George W. Bush depois do 11 de Setembro americano? Por quase mil dias, europeus e norte-americanos vêm vivendo sob calendários diferentes. A Europa não mudou depois dos ataques de 11 de setembro de 2001, como aconteceu nos Estados Unidos. Nós clamamos que "somos todos americanos", mas não era verdade. Não sentíamos realmente que estávamos em guerra, da forma como os americanos sentiam. Será que isso mudará, agora? Será que o "somos todos espanhóis" de hoje durará mais tempo? Ou será que a data de 11 de março de 2004 terá ressonância futura apenas para a história espanhola?
Muito dependerá, evidentemente, de quem tenha sido o responsável pelo ataque. Se foi a Al Qaeda, poucos duvidarão de que se trata do 11 de Setembro europeu. Os passageiros terão sido assassinados como punição pelos pecados do Ocidente. (Não importa que entre as vítimas inocentes houvesse muçulmanos da África do Norte que vivem nos subúrbios de Madri. Os terroristas islâmicos não querem ser incomodados com esses detalhes.) Para impedir futuros ataques, será necessária uma cooperação ainda mais estreita entre as políticas e os serviços de inteligência europeus, e procedimentos de imigração e de asilo político unificados para todo o continente. Teremos enfim de acordar para o fato de que o terrorismo islâmico é uma ameaça geograficamente mais próxima de nós do que dos Estados Unidos. O que a Europa tem de fazer ficará claro, se bem que não mais fácil.
Haverá também motivos mais fortes de solidariedade européia. Se o governo Aznar foi escolhido por sua adesão àquilo que a Al Qaeda caracteriza como a "aliança entre cruzados e sionistas" na Guerra do Iraque, a lição a ser aprendida no momento não é a de que nenhum governo europeu deveria participar de ações no mundo muçulmano, por medo de represálias. A lição é que os europeus deveriam se manter mais unidos, em um ou em outro sentido.
Se, no entanto, o atentado tiver sido responsabilidade do movimento terrorista basco ETA, ou de uma facção radical oriunda do grupo, haverá uma forte tentação para dizer que se trata essencialmente de um problema espanhol; da mesma forma que a maior parte dos europeus continentais acredita que o IRA seja, na verdade, um problema britânico, e não europeu. De fato, o primeiro-ministro espanhol expressou sua primeira resposta ao ataque, na televisão, em termos basicamente nacionais. Referiu-se a pessoas que estavam sendo vítimas de assassinato "simplesmente por serem espanholas", o que implicava, claramente, que os assassinos teriam sido os terroristas bascos. "Somos uma grande nação", afirmou, "cuja soberania reside em cada espanhol."
Quando a Espanha aderiu à União Européia, em 1986, muitos esperavam que a estrutura da Europa integrada, com suas muitas camadas de soberania compartilhada, ajudasse a resolver o problema basco. Mas isso não acontece, ou pelo menos não em medida suficiente. Os políticos bascos convencionais vêm pressionando pacificamente por algo cada vez mais próximo da independência, mais recentemente por meio de propostas do primeiro-ministro da região basca, Juan José Ibarrexte, para que sua região se torne "um Estado livre" estreitamente associado à Espanha. Se o ETA tiver sido responsável pelo atentado, a resposta de Madri, não importa que partido vença as eleições gerais de hoje, provavelmente será um categórico "de jeito nenhum, José". Outros países europeus podem querer oferecer assistência como "intermediários isentos" para essa relação extremamente difícil, mas a solução só pode ser encontrada na Espanha, em última análise. Assim, com o tempo, a tentação será encarar o atentado não como o 11 de Setembro da Europa, mas como o 11 de Março espanhol.
Os americanos sem dúvida estão dizendo, em uma metáfora tão desgastada que me causa sono, que o ataque foi "um alerta para a Europa". E é fato. Sejamos honestos: nós, europeus, continuamos dormindo pacificamente por tempo demais, depois do 11 de Setembro americano. Mas parte da solidariedade européia àquele ato de barbarismo também envolve dizer aos Estados Unidos -e em uníssono- aquilo que Washington vem fazendo de errado em sua "guerra contra o terrorismo". Se você deseja saber o que está acontecendo de errado, deveria ler um livro, a um só tempo esperto e tolo, de David Frum e Richard Perle, chamado "An End to Evil: How to Win the War on Terror" (pondo fim ao mal: como vencer a guerra ao terrorismo). (As pessoas não podem ser sábias e tolas a um só tempo, mas nada impede que sejam espertas e tolas.) Como parte de sua estratégia para vencer a guerra contra o terrorismo, argumentam Frum e Perle, os Estados Unidos deveriam deixar de apoiar "uma Europa mais estreitamente integrada" e "forçar os governos europeus a escolher entre Paris e Washington". Governos europeus como a atual administração espanhola, no momento um dos mais próximos aliados dos americanos.
Mas considerem agora, à luz do atentado em Madri, o que seria realmente necessário para que os europeus se tornem parceiros efetivos da guerra contra o terrorismo. Quer a responsabilidade tenha cabido à Al Qaeda, quer ao ETA, a resposta seria uma maior cooperação no interior da Europa e, especificamente, com a França. É a França que tem a maior população muçulmana da União Européia e, porque os bascos vivem dos dois lados da fronteira franco-espanhola, é a França o parceiro mais importante da Espanha na Europa para enfrentar a ameaça do terrorismo basco. No entanto lá vão esses espertos homens de Washington, tentando separar a Espanha da França, em nome da "guerra contra o terrorismo". Diante de algo que é inquestionavelmente maligno, deixemos de lado essas tolas polêmicas transatlânticas e falemos sério.
E sejamos sérios como europeus. Dentro de duas semanas, haverá uma reunião regular de chefes de governo da União Européia, em Bruxelas, sob a presidência da Irlanda, que sabe uma ou duas coisas sobre o impacto sangrento do terrorismo. Até que saibamos quem cometeu essa atrocidade, é cedo demais para dizer qual deveria ser a resposta européia. Mas, se acreditamos que a Europa existe, ela deve ir além do habitual comunicado anódino.
Isso é mais ou menos tudo que uma análise calma nos permite dizer, apenas algumas horas depois do ataque; exceto, talvez, que a análise calma não é o bastante. Em um momento como esse, o que precisamos transmitir acima de tudo é a nossa solidariedade, não de pensamentos, mas de sentimentos, como o nobre defensor da democracia espanhola fez, de maneira tão comovente, ao seu povo. Sentiríamos essa solidariedade, espero, caso os ataques tivessem atingido uma cidade na China, no Peru ou em Gana, simplesmente por sermos humanos. E certamente tivemos a mesma reação quando o ataque atingiu uma cidade americana. Mas, se somos europeus, devemos senti-la de forma muito mais intensa porque o ataque atingiu uma cidade européia. Quer nossas bandeiras sejam européias, quer nacionais, elas estão todas a meio pau.


Timothy Garton Ash é historiador inglês e diretor do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Oxford.


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