São Paulo, domingo, 14 de março de 2010

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Diário reconstitui viagem de D. Pedro 2º

Imperador percorreu a Terra Santa por 18 meses, passando por mais de cem cidades, no mais longo de seus tours internacionais

Brasileiro fez percurso de 500 km com uma comitiva de 200 pessoas, movida a tração animal, deixando atrás turbulências da corte


MARCELO NINIO
DE JERUSALÉM

Quando desembarcar em Israel, o presidente Lula mergulhará numa realidade política a anos-luz da encontrada por D. Pedro 2º em 1876, na única visita até hoje de um governante brasileiro à região. Mas quem se aventurar a repetir os passos do imperador na Terra Santa, se surpreenderá com as marcas que resistiram ao tempo e aos conflitos nos locais percorridos pela comitiva real.
A passagem do último imperador do Brasil pela Palestina fez parte de uma monumental excursão que durou 18 meses e passou por mais de cem cidades em quatro continentes.
Nunca antes na história do império o monarca havia ficado tanto tempo fora. Foi a mais longa das três grandes viagens internacionais de D. Pedro 2º, que deixou as turbulências abolicionistas da corte para trás e se lançou no mundo.
É possível reconstituir os passos do imperador na Terra Santa graças às descrições deixadas por ele em um detalhado diário de viagem. Em 24 dias, o imperador visitou Líbano, Síria e Palestina, num percurso de 500 km - uma enormidade para uma comitiva de 200 pessoas movida a tração animal.
O diário de viagem foi achado por acaso em 1995 pelo historiador Reuven Faingold, da Universidade de Jerusalém, que dá aulas na universidade FAAP, em São Paulo.
Com uma lupa, ele transcreveu a letra miúda do autor e publicou "D. Pedro 2º na Terra Santa" em 1999 (Ed. Sêfer, esgotado), um diário que joga luz sobre a personalidade despojada do monarca e descreve cenários que se preservaram e hoje são cercados pelo conflito entre israelenses e palestinos.
Após passar por EUA, Europa e Rússia, a comitiva real chegou ao Oriente Médio pelo Líbano, no dia 11 de novembro de 1876. "Chegava-se à Terra Santa por Beirute, que tinha o melhor porto", explicou Faingold, por telefone. "Não existia ainda Haifa, hoje o maior porto de Israel."
De Beirute, o imperador foi para Damasco, onde apreciou os banhos turcos, e seguiu para a Palestina, então sob domínio otomano. Na Terra Santa o objetivo de D. Pedro 2º, cristão devoto e estudante de hebraico, era a peregrinação por santuários, em especial o Santo Sepulcro, onde celebrou seu 51º aniversário com uma missa.
Mas o mais impressionante foi o mosteiro de Mar Saba (também conhecido como Saint Sabbas), edificação encravada nas montanhas isoladas do deserto de Judá. O lugar, visitado pela Folha, fica a 10 km de Belém e continua de difícil acesso, com despenhadeiros e paisagens de tirar fôlego.
Estabelecido há mais de 1.500 anos para abrigar monges reclusos, Mar Saba fica numa área que faz parte da Autoridade Nacional Palestina (ANP). Para chegar até lá é preciso passar por uma barreira militar israelense e pelo polêmico muro de segurança construído por Israel na divisa com a Cisjordânia ocupada.
A comitiva de Lula passará pelo muro quando for visitar Belém, na próxima terça. A caminho de Mar Saba, no dia 29 de novembro de 1876, D. Pedro 2º não encontrou barreiras no cenário praticamente despovoado que era a Palestina otomana, mas passou por um aperto ao descer a ribanceira que leva ao mosteiro.
"O caminho até perto de S. Sabbas é terrível, atravessando-se gargantas horrivelmente pitorescas", escreveu o imperador em seu diário, destacando que as "ribanceiras de pedra têm centenas de pés de altura."
O mosteiro grego ortodoxo é até hoje a única construção no meio da paisagem desértica, que parece intocada há séculos. Algo que também não mudou desde 1876 é a proibição de entrada a mulheres, que obrigou D. Pedro 2º a dividir a comitiva e a deixar a imperatriz Teresa Cristina fora do programa. Também continua não havendo eletricidade ou telefone.
A palmeira mencionada pelo imperador como o símbolo do mosteiro está lá até hoje. "Ela tem poderes miraculosos", diz o grego Anatasius, um dos 16 monges que vivem no local.
Em seu diário, D. Pedro se queixa da falta de hospitalidade e da ignorância dos 60 monges que ocupavam o mosteiro. Com um sorriso tímido, Anastasius arrisca uma explicação para a queda no número de moradores. "Não é fácil viver recluso no deserto", diz.
Não se sabe se D. Pedro 2º deixou registro em Mar Saba de sua visita, mas em Jerusalém ela existe e será exibida em breve. No Hospício Austríaco, que lhe serviu de hospedagem numa esquina da Via Dolorosa, está preservada a página do livro de hóspedes assinada pelo ele - que é divulgada aqui pela primeira vez.
"Estamos organizando uma exposição sobre as celebridades que estiveram aqui e D. Pedro de Alcântara é uma delas", conta Johannes Safron, que trabalha na hospedaria, hoje um local considerado "cult" por mochileiros europeus.


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