São Paulo, domingo, 14 de abril de 2002

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ELEIÇÕES

População da ex-colônia portuguesa que enfrentou 24 anos de ocupação indonésia escolhe seu líder pela primeira vez

Timor Leste elege hoje seu 1º presidente

ALESSANDRO GORI
FREE-LANCE PARA A FOLHA, DE DILI

Hoje, pela primeira vez em sua história, a população de Timor Leste terá a oportunidade de eleger seu presidente. O resultado não dá lugar a dúvidas: é certo que o eleito será Xanana Gusmão, o principal nome da luta independentista dos timorenses.
A única incógnita diz respeito à proporção de sua vitória eleitoral, pois o único outro candidato, Francisco Xavier do Amaral, não tem possibilidade alguma de vencer.
A expectativa da população quanto à transição final para a independência total de Timor Leste é enorme. Nas eleições de agosto passado para escolher os membros da Assembléia Constituinte, o índice de participação foi superior a 90%, e a previsão é que seja muito alta também desta vez.
Pela primeira vez em sua história, os próprios timorenses serão responsáveis pelo processo eleitoral, cuja realização está nas mãos de cerca de 6.000 cidadãos, sob supervisão internacional. O processo contou com a ajuda de 1.600 observadores nacionais e cerca de 240 internacionais, entre os quais os enviados pela União Européia formam o grupo maior.
Tanto Xanana Gusmão quanto Francisco Amaral integram o histórico partido Fretilin. Este organizou a resistência durante os 24 anos de ocupação indonésia e, nas eleições de agosto passado, obteve a maioria na Assembléia (55 cadeiras). Mas o Fretilin é o único partido que não expressa seu apoio a nenhum dos dois candidatos.
As diferenças de opinião entre o partido e Xanana Gusmão foram se aprofundando com o tempo. Segundo a Constituição, que é inspirada na portuguesa, o futuro presidente terá poderes muito limitados. Assim, será vital para Xanana conseguir o máximo possível de votos, para contrastar com os 62,5% dos votos obtidos pelo Fretilin em agosto.

"Tem de ser Xanana"
"Xanana Gusmão é o único que pode ser o primeiro presidente de nosso país independente", afirmou à Folha, com os olhos brilhando de emoção, um morador de um povoado próximo a Dili (capital) que se identificou apenas como Antônio. Devido ao passado colonial ligado a Portugal, uma pequena parte da população de Timor Leste ainda fala português ou tem nome português. A língua oficial, no entanto, é o tetum.
Antônio é chefe da comunidade onde habita. Sua longa barba branca e seus modos afáveis deixam transparecer seu carisma. Estamos num dos últimos comícios eleitorais na capital, e, apesar de acreditar profundamente em Xanana, Antônio quer lhe fazer algumas perguntas sobre como ele pensa desenhar o futuro do país.
A campanha eleitoral de Xanana Gusmão se baseou em conceitos como reconciliação, estabilidade e desenvolvimento. O que é certo é que o novo presidente terá de enfrentar uma situação econômica extremamente complicada.
O novo presidente vai assumir em 20 de maio, na grande festa da independência. Pode-se imaginar o que isso vai significar para a população de Timor Leste, depois de tanto sofrimento.
Uma pista da estrada que dá acesso a Dili está sendo consertada para estar pronta para o grande acontecimento: o primeiro nascimento de um novo país no novo milênio.
"Muitas personalidades públicas do mundo inteiro vão vir para cá, e precisamos estar preparados", comenta Jorge, um motorista de táxi de Dili.
Apesar disso, nos dias seguintes à posse, a maior parte das forças internacionais de paz, lideradas pela Austrália, assim como parte dos funcionários da ONU, vai deixar Timor Leste, com todos os seus equipamentos, e o país terá de encarar seu futuro sozinho.
A inevitável dolarização da economia motivada pelos dois anos e meio de missão da ONU deixará rastros importantes. No momento, a subsistência de Timor está vinculada à injeção de capital proporcionada pelos estrangeiros.
Certo de sua vitória, embora não o diga, Xanana já programou para 19 de abril uma viagem internacional para recolher fundos e investimentos para Timor, com a primeira parada prevista para Portugal. Não será tarefa fácil.
Saindo de Dili, a capital timorense onde fervilham diferentes atividades, o ambiente muda radicalmente. O desemprego aumenta de maneira drástica, e a pobreza, ainda mais.
Também se torna mais visível e generalizada a destruição operada pelas milícias pró-indonésias após o referendo de 1999, que levou à independência.
As milícias literalmente queimaram e destruíram o país, sob o olhar atônito da comunidade internacional, que tinha organizado o referendo, mas sem exigir o deslocamento de tropas.
Ainaro é a capital de um distrito ao sul de Dili, onde vivem cerca de 10 mil pessoas. Depois do referendo de 1999, cerca de 90% da cidade foi reduzida a escombros, e, desde então, apenas 20% do que foi destruído foi reconstruído. Boa parte da população não tem trabalho.
Nesse distrito pode-se encontrar um mínimo de economia de subsistência: na parte mais baixa cultiva-se o arroz, e nas montanhas, café. Algumas famílias criam animais. Mesmo assim, imaginar que é possível sobreviver dessa maneira é pura utopia.
A população está convencida de que o novo presidente e o novo governo terão de buscar as soluções para tirá-la dessa situação.
Mesmo assim, hoje se inicia uma nova era, depois dos horrores da ocupação indonésia. Depois de todo o sangue derramado em nome da independência e soberania do país, todo o resto parece ter pouca importância, pelo menos por enquanto.
"Muitas pessoas ainda sentem muito rancor pelas tragédias vividas durante esses anos", explica Cesário Magno, diretor da escola primária Santa Maria, com cerca de 500 alunos, em Ainaro. "Um dos pontos do programa de Xanana diz respeito à reconciliação. Mas é claro que não pode haver reconciliação sem justiça", diz.
Cesário reconhece que também Francisco Amaral é um líder histórico do país, "mas ele durou pouco. Depois de 1977, só Xanana continuou a lutar", afirma.
Cesário confirma: "Ele [Xanana] serviu ao povo durante os 24 anos de luta. Ele sofreu ao lado de nós. Foi o comandante supremo da guerrilha. Nosso primeiro presidente não poderia ser outro. O povo o exige".

Independência
O caminho até a independência foi longo e árduo. Em 1974, após a Revolução dos Cravos (que derrubou a ditadura de Salazar), Portugal abriu mão de suas colônias, entre as quais estava Timor Leste.
A eclosão de uma guerra civil entre os partidários da independência e os setores que preferiam a unificação com a vizinha Indonésia forneceu a este último país o pretexto para uma invasão.
Timor Leste foi ocupado militarmente pela Indonésia em novembro de 1975 e anexado a ela como sua 27ª Província, com apoio dos Estados Unidos, que, recém-derrotados na guerra do Vietnã, temiam que os líderes independentistas de Timor Leste adotassem o comunismo.
Os 24 anos seguintes de opressão sob o regime do ditador Suharto levaram à morte cerca de 300 mil timorenses (hoje o território tem aproximadamente 800 mil habitantes).
A queda de Suharto, em 1998, provocada pela crise econômica na Ásia que atingiu em cheio a Indonésia, abriu caminho para um referendo sobre o futuro de Timor, que acabou sendo realizado em setembro de 1999, com supervisão da ONU. Nele, 78,5% dos timorenses votaram pela independência de Timor Leste. A reação das milícias pró-Indonésia deixou o país destruído, com grande número de mortos e meio milhão de pessoas deslocadas.
Fragilizada pela crise econômica e diante da pressão internacional, a Indonésia acabou cedendo e, no final de 1999, foi criada a Administração Transitória das Nações Unidas para Timor Leste (Untaet), entregue ao diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello.
Além de prestar assistência aos refugiados, Mello teve como desafio iniciar a reconstrução do país e criar uma administração, uma polícia e instituições democráticas que conduzissem o território à independência. Em agosto de 2001, foram realizadas as primeiras eleições livres para a formação da Assembléia Constituinte, que redigiu a nova Constituição e marcou as eleições presidenciais que acontecem hoje.


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