São Paulo, sexta-feira, 14 de outubro de 2005

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Cristãos temem o "novo Iraque"

Karim Kadim/Associated Press
Iraquiana vota no plebiscito da nova Constituição, em Bagdá


KAREN MARÓN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BAGDÁ

"Quem ataca os cristãos não são os muçulmanos. São as mesmas pessoas que atacam jornalistas, outros religiosos, outras pessoas. São aqueles que estão decididos a matar. São terroristas de fora que não querem que haja estabilidade." Quem diz isso é o padre Manuel Hernández Estévez, nove meses depois da última vez em que falou à Folha, nas eleições de janeiro deste ano.
Os cristãos iraquianos estão vivendo suas horas mais difíceis desde que, em agosto do ano passado, cinco igrejas -quatro em Bagdá e uma em Mossul- foram alvo de uma onda de atentados sincronizados no momento em que os fiéis assistiam à missa de domingo. "Às vezes isso é apresentado como problema religioso ou como colaboração com a guerra, mas a verdadeira questão em pauta é a desestabilização", observa o padre missionário, que pertence à comunidade dos Carmelitas Descalços.
Quase cem cristãos iraquianos foram assassinados por organizações islâmicas radicais, basicamente sob a acusação de vender bebidas alcoólicas ou de colaborar com os EUA. Além disso, os cristãos são vistos como alvo fácil para conseguir dinheiro. Dezenas de lojas, cafés, fábricas e depósitos de bebidas, salões de beleza e cinemas pertencentes a cristãos já foram destruídos. Também são comuns os casos em que mulheres cristãs têm sido forçadas a usar o véu em público, sob ameaça de morte.
Hoje o padre Manuel é o único espanhol residente no Iraque, onde chegou em março de 2004.
Doze horas antes de ele conceder esta entrevista à Folha, o bairro de Salijia, onde fica a igreja erguida em homenagem a Santa Tereza -localizada na linha de fogo entre o bairro Al Manzur e a "zona verde", que abriga a embaixada dos EUA e a sede do governo iraquiano-, foi palco de uma operação policial que espalhou o medo pela região.
O medo de ataques torna-se visível por barreiras que interrompem o acesso de veículos nas quatro ruas que levam ao convento, especialmente na rua da entrada principal. As granadas deixam, quase diariamente, buracos no jardim, mas até agora não atingiram o interior da construção.

Extinção
Faltando pouco para o plebiscito sobre a Constituição -já iniciado em prisões e hospitais-, a aprovação do islã como "fonte principal de legislação no Estado" é uma das maiores preocupações das autoridades da igreja, para as quais a medida pode levar o cristianismo quase à extinção no Iraque. "A imposição religiosa não é compatível com os princípios leigos da democracia", diz o padre.
Enquanto isso, eram contabilizados em mais de 40 mil os cristãos -que, no Iraque, formam uma minoria de 3% dos 26 milhões de iraquianos- forçados ao exílio, obrigados a instalar-se em países vizinhos. O destino preferencial desses exilados é a Síria.
Desde o ano passado, mais de 5.000 famílias se dispersaram pelas cidades de Kamisli, Alepo, Damasco e Tartas. O governo sírio lhes facilita a obtenção de uma carta de residência, garante o atendimento médico e admite seus filhos nas escolas públicas.
Outros tantos cristãos, sem possibilidade de sair do Iraque, vêm tentando fugir dos ataques refugiando-se no Curdistão, onde são vistos como "deslocados internos". O presidente iraquiano, Jalal Talabani, ordenou ao governo local curdo que desse terrenos, casas e empregos aos cristãos.
Milhares de cristãos mudaram de nome e passaram a se disfarçar e a esconder seus trabalhos. Mesmo assim, são ameaçados, assassinados e optam por exilar-se. "Estamos muitos preocupados", disse o monsenhor Louis Sako, arcebispo de Kirkuk. "Se não existe nada que garanta os direitos dos cristãos, eles irão para outros países. Estamos pedindo às pessoas que permaneçam no país, mas o problema é que não podemos lhes oferecer uma perspectiva de futuro. Ninguém sabe o que vai acontecer."
Em Mossul, um imã, em sua pregação da sexta-feira, recomendou a seus fiéis que não comprassem as casas e lojas daqueles que vão embora, porque os cristãos seriam expulsos de qualquer maneira e, "então, vocês poderão ficar com seus bens de graça".
"Quais serão nossos direitos?", perguntou o monsenhor Sako. "Nós, cristãos, já estávamos aqui muito antes da chegada do islã e dos árabes."
No Iraque, os cristãos, em sua maioria, são etnicamente assírios ou caldeus, ou seja, pertencem a algumas das correntes religiosas mais antigas do mundo. Os assírios são os habitantes originais dessa região. De acordo com o Evangelho, o apóstolo Tomás converteu essa comunidade pouco após a ressurreição de Cristo.

Culto
A Constituição anterior previa a liberdade de culto. Durante a ocupação norte-americana e com o novo governo, a mesma linha vem sendo mantida. Os cristãos iraquianos são autorizados a construir igrejas e praticar seu culto, as mulheres cristãs não são obrigadas a cobrir o rosto, e as crianças podem receber o ensino religioso cristão. Mas tudo isso pode mudar.
Imerso na realidade iraquiana, o padre Manuel decidiu obter uma cópia do projeto da Constituição, que estudou com cuidado. "A Constituição é importante para o povo, e os iraquianos estão contentes porque é um programa de vida", disse ele. "Mas, quando se lê nas entrelinhas, percebe-se que o texto contém muitos pontos obscuros. Cada um luta por seus interesses próprios, e não existe conceito de unidade."
"Além disso, o imobilismo da sharia [a lei islâmica] é perigoso para os leigos, seja qual for sua religião. Ela se assemelha à imposição de uma etapa pré-feudal", acrescenta. Mas o padre Manuel enfatiza: não é uma guerra de religiões. "Os ataques aos cristãos não fazem parte de uma trama programada; são obra de grupos integristas que são contra tudo o que acreditam ser diferente."

A argentina Karen Marón é especializada na cobertura de conflitos armados, como na Colômbia e no Oriente Médio

Tradução de Clara Allain


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