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São Paulo, sexta-feira, 14 de novembro de 2003

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ENTREVISTA

Para o presidente, é inconcebível deixar o Iraque e o Afeganistão sem capturar o ex-ditator e Osama bin Laden

Bush nega saída e promete pegar Saddam

ANDREW GOWERS
DO "FINANCIAL TIMES", EM WASHINGTON

Para o presidente dos EUA, George W. Bush, é "inconcebível" retirar as tropas americanas do Iraque e do Afeganistão antes da captura do ex-ditador iraquiano Saddam Hussein e do terrorista saudita Osama bin Laden. "Não sairemos até terminarmos o trabalho. Ponto", disse ele.
Questionado se isso incluiria a captura de Saddam e do líder da Al Qaeda, disse: "Sim, é parte disso. Mas mais importante é criar uma sociedade livre e democrática, esta é a missão".
Nesta tarde de uma quarta-feira chuvosa, o "Financial Times" está desfrutando de um passeio não solicitado pela parte mais exclusiva da sede do governo americano, o Salão Oval, tendo como guia o seu ocupante, o presidente Bush.
"Eu queria mostrar a você esse santuário da democracia... meio que dá a você uma idéia de quem eu sou", Bush diz a três espantados jornalistas britânicos.
E assim admiramos o tapete, desenhado por Laura Bush ("é a minha mulher") com raios de sol e estrelas texanas para projetar "um sentimento de otimismo". Examinamos obras de arte texanas penduradas nas paredes. "É muito importante para um presidente saber quem ele é antes de assumir o cargo. Há muita pressão, muitas decisões a serem tomadas. Se você tenta descobrir quem você é enquanto trabalha, você não fará um bom trabalho."
Admiramos a mesa entalhada na madeira tirada de um navio da Marinha britânica, oferecida pela rainha Vitória aos EUA. "É uma mesa maravilhosa. Nem todos os presidentes a usaram." Franklin D. Roosevelt, John Kennedy e Ronald Reagan foram alguns presidentes que a usaram.
Há mais: o busto do premiê britânico Winston Churchill, emprestado pelo amigo próximo e atual chefe de governo britânico, Tony Blair: "Acho que Churchill era um pensador extremamente lúcido... o tipo de cara que aguenta firme quando você precisa aguentar firme... gostaria de ser tão inteligente quanto ele era". Há ainda um imenso quadro de Abraham Lincoln: "O maior presidente deste país, por isso o coloquei na parede".
A cada passo vem uma sensação de que Bush está conscientemente se medindo em relação ao gabinete e a seus ocupantes anteriores. Será que ele agora acha que pode se incluir nesse panteão?
"O presidente tem de entender que neste gabinete a pessoa nunca é maior do que o gabinete", diz espontaneamente. "Se você achar que é maior do que ele, você fracassará como presidente."
Este é, parece muito claro, um presidente Bush diferente -e ainda em processo de mudança. O charme simples e o humor franco e autodepreciativo ainda aparecem com frequência. Mas agora ficam em segundo plano, deslocados por um tom sóbrio e focado exclusivamente em um discurso sobre como o mundo e o seu trabalho mudaram desde os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.
A solenidade não é difícil de ser compreendida à luz das terríveis notícias do dia: 18 soldados e civis italianos mortos no Iraque, um relatório da CIA advertindo sobre os riscos de a ocupação americana fracassar e reuniões frenéticas dentro do governo a respeito de uma mudança de rumo no Iraque. Mas Bush se mantém firme no quadro geral.
"Veja, [o 11 de Setembro] mudou a natureza da Presidência. Mudou o esquema de segurança dos Estados Unidos. Eu prometi ao povo americano que jamais esqueceria as lições. Ou seja, que nós não mais somos protegidos por oceanos. Nós somos vulneráveis a ataques terroristas."
No entender de Bush, a guerra contra o terrorismo continua sendo o prisma por meio do qual toda a política externa e de relações internacionais devem ser vistos. O Afeganistão foi um front, o Iraque, outro. Irã e Coréia do Norte, com sua busca por armas de destruição em massa, também.
Mas agora dois novos elementos surgiram para completar esse mantra. Um é a sutil redefinição da "guerra ao terror", para incluir outras maneiras de envolvimento internacional além da forma unilateral militar. O outro é um desejo de colocar a "guerra" num contexto mais amplo e talvez de maior ressonância histórica -especificamente, um esforço americano para disseminar no mundo liberdade, democracia e respeito pelos direitos humanos, mesmo em regiões como o Oriente Médio, que até agora era visto como local fechado a tais idéias.
Em respeito ao primeiro ponto -talvez por consciência de que a Europa tema que os Estados Unidos, após derrubarem os regimes tirânicos de Cabul e Bagdá, fiquem com apetite para prosseguir nessa trilha-, Bush se esforça para salientar as diferenças entre o Iraque e outros problemas de política externa. "O caso no Iraque foi único, é único, porque o mundo, por mais de uma década, se manifestou. A rota diplomática foi tentada... Tendo dito isso, nem todas as situações exigem respostas militares. Na verdade, eu espero que muito poucas situações exijam respostas militares."
Tome-se o caso das armas de destruição em massa na Coréia do Norte, por exemplo. Bush disse que, trabalhando com a China, ele conseguiu que cinco países "dissessem a mesma mensagem para Kim Jong-il [ditador norte-coreano]: "Nós não queremos que você produza armas nucleares'". Ou o do Irã, no qual Reino Unido, França e Alemanha estão trabalhando com os Estados Unidos para forçar a inspeção internacional de programas nucleares clandestinos.
"Os iranianos devem ouvir de um mundo unido que é inaceitável que eles construam armas nucleares. Nós esperamos que exista um regime transparente no Irã", diz o presidente.
"A minha opinião é que sempre há maneiras de levar públicos e nações rumo a um objetivo comum, que é precisamente o que estamos fazendo. É exatamente o que a ONU tentou fazer e outros tentaram fazer [no Iraque]. Só que, no fim, alguns países decidiram que "graves consequências" significava algo diferente do que eu pensava."
Essa curiosa subestimação do clamor internacional a respeito do Iraque representa um certo distanciamento da confiança unilateralista da "estratégia de segurança nacional" oficial de Bush. É também a mensagem de que, se mantida, poderia acalmar alguns de seus críticos na Europa.
O segundo ponto -colocar o Iraque e outras ações de política externa dentro do contexto amplo de um desejo de promover sociedades livres- é mais recente e foi exposto com grande ênfase em um importante discurso em Washington na semana passada.
Na entrevista, expressou-a da seguinte forma: "Na arena da política externa, tomei decisões com base em um par de princípios. Um, qual a melhor maneira de proteger os EUA? É a minha maior responsabilidade... Mas há uma ambição maior também, porque entendo que sociedades livres sejam sociedades que não gestam o terror. O meu ponto é que sociedades livres e sociedades democráticas são sociedades transformadoras. E temos uma chance de transformação por meio de cooperação, transformar de maneira positiva sociedades inteiras e partes inteiras do mundo".
É uma ambição e tanto, que carrega conscientemente ecos de parte da retórica de Ronald Reagan -incluindo, não por acaso, o histórico discurso do ex-presidente no Parlamento britânico em 1982.
Com referências elogiosas ao premiê britânico, Tony Blair, Bush aplica essa lógica diretamente ao Iraque, devido a sua posição no centro da região em que "a tirania, a violência e o terror reinaram": "A missão no Iraque é criar um país estável, livre e pacífico. Essa vai ser uma missão transformadora. É um marco na história da liberdade. E Tony Blair compreende isso".
Mas qual é a relação que esses sentimentos têm com a realidade dura e crua da vida sob ocupação? Bush se recusa a ser incomodado pelas adversidades de curto prazo. "Obviamente é duro. Esses assassinos [as forças rebeldes iraquianas] são obstinados. Eles vão matar porque querem intimidar. Eles querem que saiamos de lá."
Por outro lado, progressos estão sendo feitos: a criação de uma nova moeda, o aumento da produção de petróleo ("que pertence ao povo iraquiano"). Muitos dos horrores previstos, como disputas sectárias disseminadas por todo o país, não se concretizaram.
Mais importante, o melhor prêmio, é a aproximação. "Queremos que os iraquianos entendam que nós acreditamos que eles tenham toda a capacidade de administrar seu próprio país. Quanto mais as pessoas entenderem isso, acho que mais confortáveis eles se sentirão a respeito de seu futuro. E, quanto mais rápido a soberania for transmitida, de uma maneira proporcional à estabilidade do país, melhor será."
Por maior que seja o contraste entre a realidade atual e a aspiração manifestada, em relação ao Iraque ou a outros países problemáticos, como a Arábia Saudita, não restam dúvidas sobre a sinceridade de Bush nesses pontos. Eles se tornaram parte da sua própria fé, possivelmente servindo de um escudo contra as crescentes críticas a suas políticas domésticas e a sua imensa impopularidade no exterior.
Será que as pesquisas internacionais de opinião mostrando que a imensa simpatia pelos EUA após o 11 de Setembro se desmancharam em meio à controvérsia sobre a guerra e o unilateralismo americano não o incomodam? Ou o fato de que quando ele visitar seu aliado mais próximo na semana que vem ele será confrontado por dezenas de milhares de manifestantes em Londres?
Sua primeira resposta, além de expressar apoio à tradição britânica de livre expressão, recorre ao humor. "Tudo o que posso dizer é que, quando fui às Filipinas, havia milhares e milhares e milhares de pessoas nas ruas acenando com todos os cinco dedos."
A sua segunda resposta é mais contemporizadora, mas também não mostra recuo. "Eu entendo perfeitamente que nem todo mundo concordará com as minhas decisões. Eu simplesmente não ligo para as pesquisas. Se eu estivesse tentando ser presidente prestando atenção às pesquisas, eu estaria andando em círculos. Essa é uma das razões pelas quais eu tenho o busto de Winston Churchill aqui. Pelo menos, pelo meu entendimento de história, ele dizia o que pensava, fazia o que pensava ser o certo e liderava..."
"Um líder deve projetar uma visão otimista. Algumas vezes é difícil ser otimista se você lê um monte de coisas a seu respeito."
Isso é o máximo de autoquestionamento exibido por Bush. Ele logo retoma a sua atitude mais habitual de confiança otimista.
Por trás da fachada, e apesar de sua recusa ou incapacidade de modular sua mensagem para platéias diferentes, a essência do que ele diz mudou sutilmente. A "guerra ao terror" pode ser conduzida por vias pacíficas, diplomáticas. E "a melhor maneira de vencer, no longo prazo... é a disseminação da liberdade".
O presidente Bush algum dia passará a fazer parte do panteão daqueles que absorvem o seu pensamento no Salão Oval? Muito depende dos acontecimentos dos próximos meses, especialmente no Iraque. Eles mostrarão se, como Reagan, Bush está numa posição de reivindicar o crédito por uma histórica vitória contra um inferno político, ou se, mais como o presidente Lyndon Johnson no Vietnã, ele está esmagado por uma situação que foge ao seu controle.
Bush se contenta em deixar que a história de longo prazo dê o veredicto final.
"O interessante sobre presidentes e premiês é que você nunca estará por perto para... julgar o verdadeiro mérito da história, das decisões que você toma. A história de curto prazo é... muito subjetiva. Afinal de contas, a pessoa que escreveu a história não teve a chance de ver todos os efeitos decorrentes das decisões tomadas. E, de qualquer modo, a maior parte dos historiadores de curto prazo não está muito contente por eu estar na Presidência."


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