São Paulo, domingo, 14 de novembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

O que dirão sobre Arafat?

Arafat era um sonhador, qualidade popular entre palestinos, que contavam só com seus sonhos

ROBERT FISK
DO ""THE INDEPENDENT"

Ele foi tudo que havia de leal e tudo que havia de infeliz no sonho palestino. Tenho uma gravação em fita cassete de uma conversa com Arafat, sentado comigo numa encosta de montanha, no escuro e no frio, perto do porto de Trípoli, no norte do Líbano, em 1983, quando o velho -ele sempre foi chamado de velho, mesmo muito antes de sê-lo- estava cercado pelo Exército sírio, outros dos ""irmãos" árabes que queriam liderar a causa palestina e acabaram por combater palestinos, em lugar de israelenses.
Pior ainda -os sírios tinham subornado alguns de "seus" palestinos, convencendo-os a juntar-se a eles no cerco. Um ano antes disso, Arafat e sua OLP tinham resistido a 88 dias de cerco na capital libanesa, Beirute, pelo Exército israelense, sob o comando do então ministro da Defesa, Ariel Sharon. Agora o destino novamente se voltara contra Arafat.
A fita chia, e, de vez em quanto, no pano de fundo, ouvem-se morteiros atingindo a encosta do morro. Eu a ouvi mais uma vez agora, notando o vento que soprava forte no microfone.

Arafat - Não me afastarei de meus combatentes da liberdade no momento em que enfrentam a morte e o perigo de morte... É meu dever estar ao lado de meus combatentes da liberdade, meus oficiais e meus soldados.

Fisk - Um ano atrás, você e eu conversamos em Beirute ocidental. Agora estamos no alto de um morro varrido pelo vento, perto de Trípoli, 50 milhas mais longe da fronteira de Israel, ou da fronteira da Palestina, e setores dentro do Fatah estão se rebelando.
Arafat -
Você vê, estou lhe dando outra prova de que somos uma noz que não é fácil de quebrar. Espero que você ainda se recorde do que Sharon disse no início da invasão. Ele torcia para que no prazo de três a cinco dias conseguisse liquidar ou esmagar a OLP, nosso povo, nossos combatentes da liberdade. Mas aqui estamos.
O cerco de Beirute, as batalhas do sul do Líbano, este milagre, 88 dias, a mais longa guerra árabe-israelense -e, depois disso, temos essa guerra de atrito contra o Exército israelense, não apenas os palestinos.
Definitivamente, nós e nossos aliados -nossos aliados, os libaneses- estamos participando desta guerra de atrito e temos orgulho -eu tenho orgulho de ter essa brava aliança.

Fisk - Oitenta quilômetros mais longe da Palestina!
Arafat -
Qual é a diferença entre 80 km ou 80 mil km? Um metro para fora da fronteira da Palestina, e já estou longe.

Arafat era um sonhador, o que era uma qualidade popular entre palestinos, que contavam apenas com seus sonhos para lhes proporcionar esperança. Mesmo naquela fase inicial, se uma posição conciliatória lhe fosse pedida, ele topava conversar com israelenses e até mesmo dar indícios de uma possíveis aceitação da partilha da Palestina. ""Viverei sobre um metro quadrado de minha terra", ele dizia -a proporcionalidade geográfica não era seu ponto forte.
Mas, se um dos satélites mais radicais da OLP constrangia os palestinos -e o mundo- com o assassinato de um inocente, Arafat entrava em cena para prevenir uma tragédia ainda maior, com isso conquistando prestígio a partir dos crimes cometidos por sua própria organização. Foi assim que o assassinato, por palestinos, de um aposentado judeu aleijado chamado Leon Klinghoffer a bordo do navio sequestrado Achille Lauro, em 1985, foi supostamente superado pelo gesto humanitário de Arafat ao organizar a libertação dos outros 300 passageiros.
Mas foi seu maior erro político -o apoio dado a Saddam Hussein após a invasão iraquiana do Kuait, em 1990- que lhe proporcionou sua vitória maior e mais vazia. Como o rei Hussein, que também se negara a ser a favor da ""pax americana" decretada pelo presidente Bush pai, Arafat se enfraqueceu a ponto de fazer as pazes com Israel, e o Acordo de Oslo -o tratado de paz mais trôpego desde Versalhes- era a isca que poderia fisgá-lo. Arafat achou que estavam lhe oferecendo a Palestina -um Estado, selos, uma linha aérea nacional, prestígio, admiração, Jerusalém oriental e um Exército-, mas não era nada disso. Em lugar disso, Oslo revelou não passar de uma oferta de colaboração: pedia-se a Arafat que policiasse a Cisjordânia e a faixa de Gaza em nome de Israel, do mesmo modo que o oficial renegado libanês general Lahd tinha policiado o pequeno feudo israelense no sul do Líbano. Seu trabalho não seria o de representar seu povo, mas de ""controlá-lo".
Foi por esse motivo que a pergunta ""será que Arafat consegue controlar sua própria população?" começou tão rapidamente a ser repetida pelos israelenses, como mantra.
É claro que ele não conseguia. O Hamas tinha sido criação de Israel, para contrabalançar o poder de Arafat -isso na época em que a OLP era a organização dos ""superterroristas" do Oriente Médio-, e Arafat não se prestaria a travar uma guerra civil na ""Palestina" em prol de Israel. Assim, ele se aferrou ao poder não com autoridade, mas com dinheiro, pagando seus homens armados e seus seguidores, ignorando com complacência alguns dos grupos menores saídos da OLP e, ao mesmo tempo, prometendo segurança, paz, prosperidade, um Estado palestino e todas as outras coisas que Oslo não lhe daria.
Seu fracasso se deveu em parte a esse sistema de depender de um círculo de partidários próximos. Não disposto a permitir que palestinos mais jovens e instruídos administrassem sequer sua rede de relações públicas, Arafat se cercou de porta-vozes de meia-idade e ineptos cuja ira era expressa em voz alta, mas cujo inglês era incompreensível (erro esse que os propagandistas de Israel nunca cometeram).
Quando Israel descumpriu os acordos que firmara para a retirada de suas forças, especialmente sob Binyamin Netanyahu, Arafat pediu ajuda aos EUA para que fosse mantido um cronograma em quem ninguém acreditava, exceto ele próprio. ""Cabe às partes envolvidas", lhe respondia o Departamento de Estado, entregando todas as decisões nas mãos da mais poderosa dessas duas partes -Israel.
Ele não conseguiu proteger seu povo das incursões militares ou dos ataques aéreos israelenses. Não conseguiu proteger os israelenses quando homens-bomba palestinos começaram a atirar-se contra a sociedade de Israel. Não conseguiu impedir a construção de assentamentos ilegais para judeus, e apenas judeus, em território árabe, e não conseguiu obter nem mesmo uma parcela minúscula de Jerusalém para ser a capital palestina -nem mesmo um metro quadrado da cidade na qual habitar. Não conseguiu autorização para um único refugiado palestino voltar a viver nos locais de onde sua família tinha sido expulsa em 1948. Não conseguiu proteger suas próprias fronteiras nacionais. Não lhe foi permitido controlar seu próprio aeroporto.
No final, ele só pôde deixar o prédio semidestruído no qual vivia porque iniciou o processo prolongado da própria morte.
Como tantos outros líderes árabes, Arafat governou mais pela emoção do que pela razão -George Bush filho, com sua Guerra do Iraque, é o equivalente mais próximo disso-, e isso o levava a empreender vôos de retórica que eram uma panacéia para seu povo, mas um insulto para sua elite instruída. Edward Said, o mais brilhante dos estudiosos palestinos, ficava irritado ao extremo com as bobagens sem sentido ditas por Arafat e também por seu modo vaidoso e ditatorial de governar. Arafat proibiu os livros de Said em território palestino, e os palestinos que quisessem lê-los tinham de comprá-los em Israel.
""As pessoas o amaram, é claro", me disse Said certa tarde em Beirute, enquanto tocava piano para acalmar a irritação provocada por mais um discurso de Arafat. ""Ele ficou lá em cima no pódio e lhes prometeu um Estado palestino, e as pessoas bateram palmas, bateram os pés e gritaram sua aprovação. Alguém perguntou como seria esse Estado, e Arafat apontou para uma criancinha na primeira fileira, dizendo: "Se você quer saber a resposta, pergunte a cada criança palestina o que ela quer". E a multidão delirou outra vez. Foi uma resposta muito bem recebida. Mas de que diabos ele estava falando? O que ele quis dizer?"
Apenas Hanan Ashrawi podia dizer o que quisesse a Arafat. ""Acho que fui a única pessoa que podia telefonar para ele e lhe dizer que ele estava errado", ela me falou certa vez. ""Eu dizia "sr. Presidente, isso está errado, não vai funcionar". Mais tarde seus assessores me diziam: "Como você ousa falar com o presidente nesse tom? Como ousa criticá-lo?". Mas alguém precisava fazê-lo."
Houve outra conversa entre Said e Arafat, mais profunda, em 1985, quando os dois discutiram Haj Amin al Husseini, o grão-mufti de Jerusalém, que apoiou a revolta de 1936 contra o governo britânico e que sempre acreditou que os sionistas iriam tomar a Palestina para criarem um Estado israelense, mas acabou em Berlim, durante a guerra, exortando Hitler a impedir a emigração de judeus à Palestina e incentivando os muçulmanos bósnios a entrarem para a SS. De acordo com Said, o líder da OLP pôs a mão sobre o joelho de Said e o apertou com força. E Arafat disse: ""Edward, se há uma coisa que não quero me tornar, é como Haj Amin. Ele sempre teve razão, mas não conseguiu nada e morreu no exílio".
O que dirão sobre Iasser Arafat? Os israelenses não deixaram que Haj Amin fosse enterrado em Jerusalém. O mesmo se aplicou a Arafat. Na morte, pelo menos, Arafat e Haj Amin foram iguais.


Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Cidade amanhece calma após caos
Próximo Texto: Artigo: Legado de Arafat é a negociação para a paz
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.