|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
O que dirão sobre Arafat?
Arafat era um sonhador, qualidade popular entre palestinos, que contavam só com seus sonhos
ROBERT FISK
DO ""THE INDEPENDENT"
Ele foi tudo que havia de leal e
tudo que havia de infeliz no sonho
palestino. Tenho uma gravação
em fita cassete de uma conversa
com Arafat, sentado comigo numa encosta de montanha, no escuro e no frio, perto do porto de
Trípoli, no norte do Líbano, em
1983, quando o velho -ele sempre foi chamado de velho, mesmo
muito antes de sê-lo- estava cercado pelo Exército sírio, outros
dos ""irmãos" árabes que queriam
liderar a causa palestina e acabaram por combater palestinos, em
lugar de israelenses.
Pior ainda -os sírios tinham
subornado alguns de "seus" palestinos, convencendo-os a juntar-se a eles no cerco. Um ano antes disso, Arafat e sua OLP tinham
resistido a 88 dias de cerco na capital libanesa, Beirute, pelo Exército israelense, sob o comando do
então ministro da Defesa, Ariel
Sharon. Agora o destino novamente se voltara contra Arafat.
A fita chia, e, de vez em quanto,
no pano de fundo, ouvem-se
morteiros atingindo a encosta do
morro. Eu a ouvi mais uma vez
agora, notando o vento que soprava forte no microfone.
Arafat - Não me afastarei de
meus combatentes da liberdade
no momento em que enfrentam a
morte e o perigo de morte... É
meu dever estar ao lado de meus
combatentes da liberdade, meus
oficiais e meus soldados.
Fisk - Um ano atrás, você e eu conversamos em Beirute ocidental.
Agora estamos no alto de um morro varrido pelo vento, perto de Trípoli, 50 milhas mais longe da fronteira de Israel, ou da fronteira da
Palestina, e setores dentro do Fatah estão se rebelando.
Arafat - Você vê, estou lhe dando
outra prova de que somos uma
noz que não é fácil de quebrar. Espero que você ainda se recorde do
que Sharon disse no início da invasão. Ele torcia para que no prazo de três a cinco dias conseguisse
liquidar ou esmagar a OLP, nosso
povo, nossos combatentes da liberdade. Mas aqui estamos.
O cerco de Beirute, as batalhas
do sul do Líbano, este milagre, 88
dias, a mais longa guerra árabe-israelense -e, depois disso, temos
essa guerra de atrito contra o
Exército israelense, não apenas os
palestinos.
Definitivamente, nós e nossos
aliados -nossos aliados, os libaneses- estamos participando
desta guerra de atrito e temos orgulho -eu tenho orgulho de ter
essa brava aliança.
Fisk - Oitenta quilômetros mais
longe da Palestina!
Arafat - Qual é a diferença entre
80 km ou 80 mil km? Um metro
para fora da fronteira da Palestina, e já estou longe.
Arafat era um sonhador, o que
era uma qualidade popular entre
palestinos, que contavam apenas
com seus sonhos para lhes proporcionar esperança. Mesmo naquela fase inicial, se uma posição
conciliatória lhe fosse pedida, ele
topava conversar com israelenses
e até mesmo dar indícios de uma
possíveis aceitação da partilha da
Palestina. ""Viverei sobre um metro quadrado de minha terra", ele
dizia -a proporcionalidade geográfica não era seu ponto forte.
Mas, se um dos satélites mais radicais da OLP constrangia os palestinos -e o mundo- com o
assassinato de um inocente, Arafat entrava em cena para prevenir
uma tragédia ainda maior, com
isso conquistando prestígio a partir dos crimes cometidos por sua
própria organização. Foi assim
que o assassinato, por palestinos,
de um aposentado judeu aleijado
chamado Leon Klinghoffer a bordo do navio sequestrado Achille
Lauro, em 1985, foi supostamente
superado pelo gesto humanitário
de Arafat ao organizar a libertação dos outros 300 passageiros.
Mas foi seu maior erro político
-o apoio dado a Saddam Hussein após a invasão iraquiana do
Kuait, em 1990- que lhe proporcionou sua vitória maior e mais
vazia. Como o rei Hussein, que
também se negara a ser a favor da
""pax americana" decretada pelo
presidente Bush pai, Arafat se enfraqueceu a ponto de fazer as pazes com Israel, e o Acordo de Oslo
-o tratado de paz mais trôpego
desde Versalhes- era a isca que
poderia fisgá-lo. Arafat achou que
estavam lhe oferecendo a Palestina -um Estado, selos, uma linha
aérea nacional, prestígio, admiração, Jerusalém
oriental e um
Exército-, mas
não era nada disso. Em lugar disso, Oslo revelou
não passar de
uma oferta de colaboração: pedia-se a Arafat que policiasse a Cisjordânia e a faixa de Gaza em nome de Israel, do mesmo
modo que o oficial
renegado libanês general Lahd tinha policiado o pequeno feudo israelense no sul do Líbano. Seu trabalho não seria o de representar
seu povo, mas de ""controlá-lo".
Foi por esse motivo que a pergunta ""será que Arafat consegue
controlar sua própria população?" começou tão rapidamente a
ser repetida pelos israelenses, como mantra.
É claro que ele não conseguia. O
Hamas tinha sido criação de Israel, para contrabalançar o poder
de Arafat -isso na época em que
a OLP era a organização dos ""superterroristas" do Oriente Médio-, e Arafat
não se prestaria a
travar uma guerra
civil na ""Palestina" em prol de Israel. Assim, ele se
aferrou ao poder
não com autoridade, mas com
dinheiro, pagando seus homens
armados e seus
seguidores, ignorando com complacência alguns
dos grupos menores saídos da
OLP e, ao mesmo tempo, prometendo segurança, paz, prosperidade, um Estado palestino e todas as
outras coisas que Oslo não lhe daria.
Seu fracasso se deveu em parte a
esse sistema de depender de um
círculo de partidários próximos.
Não disposto a permitir que palestinos mais jovens e instruídos
administrassem sequer sua rede
de relações públicas, Arafat se cercou de porta-vozes de meia-idade
e ineptos cuja ira era expressa em
voz alta, mas cujo inglês era incompreensível (erro esse que os
propagandistas de Israel nunca
cometeram).
Quando Israel descumpriu os
acordos que firmara para a retirada de suas forças, especialmente
sob Binyamin Netanyahu, Arafat
pediu ajuda aos EUA para que
fosse mantido um cronograma
em quem ninguém acreditava, exceto ele próprio. ""Cabe às partes
envolvidas", lhe respondia o Departamento de Estado, entregando todas as decisões nas mãos da
mais poderosa dessas duas partes
-Israel.
Ele não conseguiu proteger seu
povo das incursões militares ou
dos ataques aéreos israelenses.
Não conseguiu proteger os israelenses quando homens-bomba
palestinos começaram a atirar-se
contra a sociedade de Israel. Não
conseguiu impedir a construção
de assentamentos ilegais para judeus, e apenas judeus, em território árabe, e não conseguiu obter
nem mesmo uma parcela minúscula de Jerusalém para ser a capital palestina -nem mesmo um
metro quadrado da cidade na
qual habitar. Não conseguiu autorização para um único refugiado
palestino voltar a viver nos locais
de onde sua família tinha sido expulsa em 1948. Não conseguiu
proteger suas próprias fronteiras
nacionais. Não lhe foi permitido
controlar seu próprio aeroporto.
No final, ele só pôde deixar o
prédio semidestruído no qual vivia porque iniciou o processo
prolongado da própria morte.
Como tantos outros líderes árabes, Arafat governou mais pela
emoção do que pela razão
-George Bush filho, com sua
Guerra do Iraque, é o equivalente
mais próximo disso-, e isso o levava a empreender vôos de retórica que eram uma panacéia para
seu povo, mas um insulto para
sua elite instruída. Edward Said, o
mais brilhante dos estudiosos palestinos, ficava irritado ao extremo com as bobagens sem sentido
ditas por Arafat e também por seu
modo vaidoso e ditatorial de governar. Arafat proibiu os livros de
Said em território palestino, e os
palestinos que quisessem lê-los tinham de comprá-los em Israel.
""As pessoas o amaram, é claro",
me disse Said certa tarde em Beirute, enquanto tocava piano para
acalmar a irritação provocada por
mais um discurso de Arafat. ""Ele
ficou lá em cima no pódio e lhes
prometeu um Estado palestino, e
as pessoas bateram palmas, bateram os pés e gritaram sua aprovação. Alguém perguntou como seria esse Estado, e Arafat apontou
para uma criancinha na primeira
fileira, dizendo: "Se você quer saber a resposta, pergunte a cada
criança palestina o que ela quer". E
a multidão delirou outra vez. Foi
uma resposta muito bem recebida. Mas de que diabos ele estava
falando? O que ele quis dizer?"
Apenas Hanan Ashrawi podia
dizer o que quisesse a Arafat.
""Acho que fui a única pessoa que
podia telefonar para ele e lhe dizer
que ele estava errado", ela me falou certa vez. ""Eu dizia "sr. Presidente, isso está errado, não vai
funcionar". Mais tarde seus assessores me diziam: "Como você ousa falar com o presidente nesse
tom? Como ousa criticá-lo?". Mas
alguém precisava fazê-lo."
Houve outra conversa entre
Said e Arafat, mais profunda, em
1985, quando os dois discutiram
Haj Amin al Husseini, o grão-mufti de Jerusalém, que apoiou a
revolta de 1936 contra o governo
britânico e que sempre acreditou
que os sionistas iriam tomar a Palestina para criarem um Estado israelense, mas acabou em Berlim,
durante a guerra, exortando Hitler a impedir a emigração de judeus à Palestina e incentivando os
muçulmanos bósnios a entrarem
para a SS. De acordo com Said, o
líder da OLP pôs a mão sobre o
joelho de Said e o apertou com
força. E Arafat disse: ""Edward, se
há uma coisa que não quero me
tornar, é como Haj Amin. Ele
sempre teve razão, mas não conseguiu nada e morreu no exílio".
O que dirão sobre Iasser Arafat?
Os israelenses não deixaram que
Haj Amin fosse enterrado em Jerusalém. O mesmo se aplicou a
Arafat. Na morte, pelo menos,
Arafat e Haj Amin foram iguais.
Tradução de Clara Allain
Texto Anterior: Cidade amanhece calma após caos Próximo Texto: Artigo: Legado de Arafat é a negociação para a paz Índice
|