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ARTIGO
O impeachment de George W. Bush
ELIZABETH HOLTZMAN
ESPECIAL PARA "THE NATION"
Já era hora. As pessoas começaram a falar abertamente sobre o
possível impeachment do presidente George W. Bush, até mesmo no Congresso. Como ex-deputada e membro do Comitê de
Justiça da Câmara dos Deputados
durante o processo de impeachment contra o presidente Richard
Nixon (196974), acredito que estejam certos ao agir dessa maneira.
Ainda consigo recordar minha
sensação de desconforto durante
o processo, quando começou a se
tornar claro que Nixon havia abusado de maneira muito sistemática dos poderes de seu cargo e que
preservá-lo no poder representava tamanha ameaça ao domínio
da lei que se tornava necessário
removê-lo do cargo.
Na época, minha esperança era
que o trabalho de nosso comitê
representasse um forte sinal para
futuros presidentes quanto à necessidade de que obedecessem às
leis. Eu estava errada.
Como a muitos outros observadores, o desdém espantoso de
Bush para com as nossas obrigações internacionais -definidas
por tratados, pela Carta das Nações Unidas e pelas Convenções de
Genebra- perturba-me profundamente. Também me senti profundamente perturbada pelos escândalos quanto à
tortura e quanto
às violações das
leis criminais
americanas ordenadas por membros dos mais altos escalões do
nosso governo
que eles parecem
implicar. Essas
preocupações se
tornaram ainda
mais graves devido ao volume crescente de indícios quanto à possibilidade de que
o presidente tenha deliberadamente iludido o país sobre a guerra com o Iraque.
Mas sensação de desconforto
semelhante à que senti durante o
caso Watergate só voltou a me
afligir depois das recentes revelações de que o presidente Bush havia determinado a instalação de
escutas nos telefones e residências
de centenas, talvez milhares, de
cidadãos americanos, em violação à Lei de Vigilância e Inteligência Externa (Fisa).
Em termos de direito constitucional, essa e outras violações
constituem causa suficiente para
o impeachment do presidente
Bush. Qualquer presidente que
assuma a posição de que está acima da lei -e a viole repetidamente- por definição comete crimes
e violações graves, o que constitui
o requisito constitucional para
que seja alvo de impeachment e
perda de mandato.
Os criadores de nossa Constituição temiam que o Poder Executivo agisse sem nenhum controle e criaram o mecanismo de
impeachment para proteger o
país contra esse risco. Mas o impeachment e a perda do mandato
não ocorrerão a menos que o povo dos EUA se convença de que
são necessários, depois de uma
investigação completa e imparcial
dos fatos e leis relevantes. Essa investigação precisa começar já.
Escutas sem mandado
Em 17 de dezembro de 2005, o
presidente Bush reconheceu que
havia repetidamente autorizado
escutas, sem obtenção de mandado, de cidadãos americanos que
realizam telefonemas internacionais. À primeira vista, essas escutas sem mandado constituem violação da Fisa. Violar essa lei é crime. Embora muitos fatos sobre
essas escutas continuem a ser desconhecidos, tornou-se evidente
agora que milhares de telefonemas foram monitorados e que as
informações obtidas pelas escutas
podem ter sido amplamente distribuídas entre as agências do governo federal.
Também se tornou evidente
que diversos funcionários do governo questionaram a legalidade
das escutas sem mandado.
A Lei Fisa foi aprovada em 1978,
no contexto das conseqüências do
caso Watergate, com o objetivo de
impedir os sérios abusos praticados na vigilância de cidadãos
americanos, revelados durante as
audiências do Congresso sobre a
questão. Entre outros abusos de
poder que cometeu, o presidente
Nixon ordenou que o FBI instalasse escutas nas residências e telefones de 17 jornalistas e funcionários da Casa Branca, sem mandado judicial. Nixon alegou que
as escutas haviam sido instaladas
para fins de segurança nacional,
mas a verdade é que tinham propósitos políticos e eram ilegais.
Da mesma forma que as escutas
instaladas sem mandado no governo Bush teriam sido causadas
pelos atentados do 11 de Setembro, as escutas do governo Nixon
supostamente se relacionavam à
Guerra do Vietnã (1965-75) e à
oposição interna a ela.
A intenção explícita do Congresso ao aprovar a lei era encontrar um ponto de equilíbrio entre
os interesses legítimos da segurança nacional, por um lado, e a
necessidade de proteger os cidadãos contra abusos presidenciais
e salvaguardar-lhes a privacidade,
por outro.
É difícil alegar que a Lei Fisa represente sério obstáculo ao uso de
escutas justificadas por fins de segurança nacional.
Desde 1978,
quando ela entrou em vigor,
mais de 10 mil
mandados solicitando escutas em
benefício da segurança nacional foram aprovados
pelo tribunal da
Fisa; apenas quatro pedidos foram
rejeitados.
Dois argumentos jurídicos foram oferecidos
para defender o
direito do presidente a violar a lei,
ambos seriamente questionados
por congressistas de ambos os
partidos.
O primeiro, altamente perigoso
em termos de alcance e de implicações, é o de que o presidente,
como comandante supremo das
Forças Armadas, tem o direito
constitucional de violar qualquer
lei dos EUA em defesa da segurança nacional.
A Suprema Corte jamais sustentou o direito do presidente a agir
dessa maneira na área de escutas
nem tampouco concedeu a ele
um "monopólio sobre os poderes
de guerra" ou o reconheceu como
"comandante supremo do país".
O nosso governo funciona sob limitações de poderes. O poder público está sujeito a controles e mecanismos de equilíbrio. Esses
controles não desaparecem em
tempo de guerra; o papel do presidente como comandante supremo não cancela os poderes do
Congresso ou a Carta dos Direitos
do Cidadão.
O segundo argumento jurídico
em defesa das escutas telefônicas
sem mandado baseia-se em uma
interpretação equivocada das leis.
De acordo com esse argumento, o
Congresso autorizou o Executivo
a instalar escutas sem aprovação
judicial quando aprovou, em
2001, a resolução que autoriza o
uso de força militar contra o Taleban e a Al Qaeda em razão dos
ataques do 11 de Setembro.
Em primeiro lugar, a resolução
quanto ao uso da força não menciona escutas. E, dado que o Congresso historicamente sempre
cerceou o uso de escutas devido às
qualidades extremamente intrusivas dessa prática, sem dúvida
haveria debate vigoroso caso
qualquer legislador considerasse
que a resolução envolveria suspender o uso da Lei Fisa.
Qual é a razão, portanto, para
que o tribunal da Fisa não tenha
sido acionado para aprovar as escutas? O presidente Bush sugeriu
que não havia tempo para obter
os mandados. Mas isso não pode
ser verdade, porque em casos de
emergência a lei permite escutas
sem mandado por até três dias,
desde que a aprovação judicial seja obtida nesse prazo. Além disso,
existem provas de que o presidente estava ciente de que as escutas
sem mandado eram ilegais.
Subvertendo a democracia
Um presidente não pode cometer crime mais sério contra nossa
democracia do que mentir ao
Congresso e ao povo dos EUA para obter o apoio deles a uma ação
militar ou guerra. Não é apenas
porque convencer outras pessoas
a darem suas vidas no combate a
uma ameaça inexistente seja repulsivo e covarde, ou mesmo porque essas falsas declarações poderiam constituir crime em determinadas circunstâncias. O maior
problema é que a decisão de ir à
guerra é a mais grave que um país
pode tomar, e em uma democracia o direito de tomá-la cabe ao
povo e seus representantes eleitos, quando não houver ameaça
de ataque iminente aos EUA.
Já que as conseqüências podem
envolver a morte de centenas ou
milhares de pessoas, esse tipo de
fraude não pode ser tolerado. O
fato de que tanto Lyndon Johnson
(1963-69) quando Nixon iludiram
o país para obter aprovação às
suas ações militares sem que tenham passado por impeachment
torna mais -e não menos- importante que Bush seja forçado a
prestar contas.
Assim que se tornou evidente
que não seriam encontradas armas de destruição em massa no
Iraque, o presidente Bush tentou
imputar a culpa pela decisão de ir
à guerra a "informações inadequadas", aparentemente para demonstrar que suas alegações
quanto ao arsenal iraquiano de
armas de destruição em massa
não constituíam trapaça deliberada. Mas informações inadequadas têm pouco ou nada a ver com
os principais argumentos usados
para conquistar o apoio popular a
uma invasão do Iraque.
Primeiro, não existiam informações sérias -positivas ou negativas- que sustentassem a alegação do governo quanto aos
contatos entre Saddam Hussein e
a Al Qaeda. Mesmo assim, o governo repetidamente tentou usar
essa conexão para demonstrar
que a invasão era uma resposta
justificada ao 11 de Setembro. A
alegação era completamente falsa.
Segundo, não havia informações confiáveis que sustentassem
a alegação do governo de que Saddam estava a ponto de adquirir a
capacidade de produzir armas
nucleares.
A maioria dos norte-americanos sabe que os motivos que Bush
forneceu para a guerra se provaram falsos. Para eles, a questão é
determinar se o presidente mentiu e, caso o tenha feito, o que se
pode fazer para puni-lo por isso.
As leis desprotegidas
Ao assumir a Presidência, Bush
fez um juramento nos termos do
qual ele prometeu que protegeria
a execução fiel das leis do país.
Não se pode usar o impeachment
para remover um presidente por
incompetência administrativa.
Mas o presidente Bush é culpado de incompetência em escala
tão imensa ou de
indiferença tão
descomunal à sua
obrigação de fazer
com que as leis sejam fielmente executadas que é possível questionar
sua dedicação ao
juramento que fez
ou sua capacidade
de o executar.
O exemplo mais
notório é a conduta da Guerra do
Iraque. De maneira irresponsável e
inexplicável, o governo não forneceu aos soldados
americanos estacionados naquele
país coletes à prova de balas ou
veículos dotados da blindagem
necessária. Um estudo recente do
Pentágono constatou que coletes
eficientes poderiam ter salvado
centenas de vidas. Por que o início
das hostilidades não foi adiado até
que os soldados recebessem o
equipamento apropriado?
Existem inúmeras sugestões de
que o momento da invasão foi determinado por motivos políticos,
e não militares. Os EUA não estavam sob ameaça iminente de ataque iraquiano, e o governo sabia
disso. Bush e sua equipe retardaram o esforço de marketing para
"vender" a guerra até que os americanos tivessem encerrado suas
férias de verão, porque "não se
lança produtos novos em agosto".
E não havia planos sérios para o
pós-guerra. A incompetência do
presidente, em sua função de comandante supremo, quanto a
proteger seus soldados por meio
do armamento adequado, e sua
incapacidade de planejar a ocupação custaram caro em termos de
vidas e de dinheiro dos contribuintes. Trata-se de uma irresponsável e grotesca desconsideração quanto ao bem-estar das tropas e da mais completa indiferença quanto à necessidade de governo organizado, depois da ocupação de um país inimigo. Por si, essas duas falhas representam violação do juramento do presidente.
Abusos de poder
O presidente Bush proclamou
recentemente que "nós não torturamos". Tendo em vista as revelações sobre as celas secretas e práticas da CIA, para não mencionar o
escândalo de Abu Ghraib, a declaração beira o absurdo, e faz lembrar a famosa afirmação de Nixon: "Eu não sou um escroque".
Há ampla documentação de
que os maus-tratos contra prisioneiros praticados por soldados e
outros agentes americanos no
Afeganistão e no Iraque foram
sistemáticos e generalizados. Sob
a Lei de Crimes de Guerra de 1996,
qualquer cidadão americano que
se envolva em assassinato, tortura
ou tratamento desumano de prisioneiros de guerra está praticando um crime. Além disso, qualquer membro da hierarquia que
aceite os maus-tratos em lugar de
os impedir também está violando
a lei. O dispositivo implementa as
Convenções de Genebra.
As provas de que dispomos no
momento sugerem que o presidente pode ter autorizado pessoalmente a prática de maus-tratos contra prisioneiros. Em janeiro de 2002, depois do início da
Guerra do Afeganistão, Alberto
Gonzales, assessor jurídico da Casa Branca, informou o presidente
Bush por escrito de que maus-tratos praticados por americanos
contra prisioneiros poderiam
causar processos sob as leis de crimes de guerra. Em lugar de ordenar que as ações criminosas cessassem imediatamente, Bush autorizou o uso de uma interpretação elástica das Convenções de
Genebra para proteger contra
processos os americanos responsáveis por abusos contra prisioneiros. Em outras palavras, a resposta do presidente quando recebeu informações de abusos contra prisioneiros foi a de tomar
providências que impedissem
processos contra os responsáveis
pelas violações, o que implica que
tenha acatado os abusos e autorizado sua continuação.
Se torturas ou tratamento desumano de prisioneiros tiverem resultado dessa decisão presidencial, ele pode ser considerado pessoalmente responsável por uma
violação das leis de crimes de
guerra.
Mais recentemente, o presidente se opôs à
emenda McCain,
que proíbe a tortura, quando ela
foi proposta inicialmente, e
apoiou tacitamente os esforços
do vice-presidente Cheney para
aprovar uma
emenda que permitiria que a CIA
torturasse ou degradasse prisioneiros. Agora, em
suas declarações
ao assinar a lei, o
presidente anunciou ter o direito de violar o novo
estatuto, alegando uma vez mais
que o comandante supremo das
Forças Armadas tem o direito de
violar a lei quando lhe convier.
Além disso, a despeito dos horrores do escândalo de Abu
Ghraib, nenhum membro importante da hierarquia sofreu medidas disciplinares. Apenas um oficial de patente significativa foi punido. É como se o inquérito sobre
Watergate tivesse se limitado a
punir os responsáveis pela invasão da sede do comitê democrata,
exatamente o que Nixon tentou
fazer, sem conseguir. O presidente Bush não tomou medidas sérias
para garantir que o escândalo fosse investigado em todas as suas
dimensões, ou para responsabilizar a hierarquia, talvez porque a
responsabilidade pudesse ser traçada à própria Casa Branca.
Próximos passos
Mobilizar o país e o Congresso
em apoio a investigações e ao impeachment do presidente Bush é
uma tarefa essencial, que já começou, mas é necessário que o processo se intensifique e cresça. O
povo americano deteve a Guerra
do Vietnã contra a vontade do
presidente -e forçou um Congresso relutante a agir quanto ao
impeachment do presidente Nixon. E pode fazer o mesmo com
relação ao presidente Bush.
A tarefa envolve três elementos:
cultivar o apoio público e legislativo, convencer o Congresso a empreender investigações sobre os
diversos aspectos indevidos da
conduta de Bush e alterar a composição partidária do Congresso
nas eleições de 2006.
Por pior que Watergate tenha
sido, depois da votação que autorizou o processo de impeachment, e da renúncia do presidente
Nixon, o país sentiu imenso alívio. O impeachment é um procedimento tortuoso, mas, agora que
o presidente Bush simplesmente
desafiou o Congresso a impedir
que ele viole a lei, é o mínimo necessário para proteger nosso sistema constitucional e preservar
nossa democracia.
Elizabeth Holtzman, 64, é advogada.
Foi deputada do Partido Democrata, por
Nova York, de 1973 a 1981. Trabalhou no
Comitê de Justiça da Câmara durante o
processo de impeachment do presidente
Richard Nixon.
Tradução de Paulo Migliacci
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