São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 2006

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ARTIGO

O impeachment de George W. Bush

ELIZABETH HOLTZMAN
ESPECIAL PARA "THE NATION"

Já era hora. As pessoas começaram a falar abertamente sobre o possível impeachment do presidente George W. Bush, até mesmo no Congresso. Como ex-deputada e membro do Comitê de Justiça da Câmara dos Deputados durante o processo de impeachment contra o presidente Richard Nixon (196974), acredito que estejam certos ao agir dessa maneira.
Ainda consigo recordar minha sensação de desconforto durante o processo, quando começou a se tornar claro que Nixon havia abusado de maneira muito sistemática dos poderes de seu cargo e que preservá-lo no poder representava tamanha ameaça ao domínio da lei que se tornava necessário removê-lo do cargo.
Na época, minha esperança era que o trabalho de nosso comitê representasse um forte sinal para futuros presidentes quanto à necessidade de que obedecessem às leis. Eu estava errada.
Como a muitos outros observadores, o desdém espantoso de Bush para com as nossas obrigações internacionais -definidas por tratados, pela Carta das Nações Unidas e pelas Convenções de Genebra- perturba-me profundamente. Também me senti profundamente perturbada pelos escândalos quanto à tortura e quanto às violações das leis criminais americanas ordenadas por membros dos mais altos escalões do nosso governo que eles parecem implicar. Essas preocupações se tornaram ainda mais graves devido ao volume crescente de indícios quanto à possibilidade de que o presidente tenha deliberadamente iludido o país sobre a guerra com o Iraque.
Mas sensação de desconforto semelhante à que senti durante o caso Watergate só voltou a me afligir depois das recentes revelações de que o presidente Bush havia determinado a instalação de escutas nos telefones e residências de centenas, talvez milhares, de cidadãos americanos, em violação à Lei de Vigilância e Inteligência Externa (Fisa).
Em termos de direito constitucional, essa e outras violações constituem causa suficiente para o impeachment do presidente Bush. Qualquer presidente que assuma a posição de que está acima da lei -e a viole repetidamente- por definição comete crimes e violações graves, o que constitui o requisito constitucional para que seja alvo de impeachment e perda de mandato.
Os criadores de nossa Constituição temiam que o Poder Executivo agisse sem nenhum controle e criaram o mecanismo de impeachment para proteger o país contra esse risco. Mas o impeachment e a perda do mandato não ocorrerão a menos que o povo dos EUA se convença de que são necessários, depois de uma investigação completa e imparcial dos fatos e leis relevantes. Essa investigação precisa começar já.

Escutas sem mandado
Em 17 de dezembro de 2005, o presidente Bush reconheceu que havia repetidamente autorizado escutas, sem obtenção de mandado, de cidadãos americanos que realizam telefonemas internacionais. À primeira vista, essas escutas sem mandado constituem violação da Fisa. Violar essa lei é crime. Embora muitos fatos sobre essas escutas continuem a ser desconhecidos, tornou-se evidente agora que milhares de telefonemas foram monitorados e que as informações obtidas pelas escutas podem ter sido amplamente distribuídas entre as agências do governo federal.
Também se tornou evidente que diversos funcionários do governo questionaram a legalidade das escutas sem mandado.
A Lei Fisa foi aprovada em 1978, no contexto das conseqüências do caso Watergate, com o objetivo de impedir os sérios abusos praticados na vigilância de cidadãos americanos, revelados durante as audiências do Congresso sobre a questão. Entre outros abusos de poder que cometeu, o presidente Nixon ordenou que o FBI instalasse escutas nas residências e telefones de 17 jornalistas e funcionários da Casa Branca, sem mandado judicial. Nixon alegou que as escutas haviam sido instaladas para fins de segurança nacional, mas a verdade é que tinham propósitos políticos e eram ilegais.
Da mesma forma que as escutas instaladas sem mandado no governo Bush teriam sido causadas pelos atentados do 11 de Setembro, as escutas do governo Nixon supostamente se relacionavam à Guerra do Vietnã (1965-75) e à oposição interna a ela.
A intenção explícita do Congresso ao aprovar a lei era encontrar um ponto de equilíbrio entre os interesses legítimos da segurança nacional, por um lado, e a necessidade de proteger os cidadãos contra abusos presidenciais e salvaguardar-lhes a privacidade, por outro.
É difícil alegar que a Lei Fisa represente sério obstáculo ao uso de escutas justificadas por fins de segurança nacional. Desde 1978, quando ela entrou em vigor, mais de 10 mil mandados solicitando escutas em benefício da segurança nacional foram aprovados pelo tribunal da Fisa; apenas quatro pedidos foram rejeitados.
Dois argumentos jurídicos foram oferecidos para defender o direito do presidente a violar a lei, ambos seriamente questionados por congressistas de ambos os partidos.
O primeiro, altamente perigoso em termos de alcance e de implicações, é o de que o presidente, como comandante supremo das Forças Armadas, tem o direito constitucional de violar qualquer lei dos EUA em defesa da segurança nacional.
A Suprema Corte jamais sustentou o direito do presidente a agir dessa maneira na área de escutas nem tampouco concedeu a ele um "monopólio sobre os poderes de guerra" ou o reconheceu como "comandante supremo do país". O nosso governo funciona sob limitações de poderes. O poder público está sujeito a controles e mecanismos de equilíbrio. Esses controles não desaparecem em tempo de guerra; o papel do presidente como comandante supremo não cancela os poderes do Congresso ou a Carta dos Direitos do Cidadão.
O segundo argumento jurídico em defesa das escutas telefônicas sem mandado baseia-se em uma interpretação equivocada das leis. De acordo com esse argumento, o Congresso autorizou o Executivo a instalar escutas sem aprovação judicial quando aprovou, em 2001, a resolução que autoriza o uso de força militar contra o Taleban e a Al Qaeda em razão dos ataques do 11 de Setembro.
Em primeiro lugar, a resolução quanto ao uso da força não menciona escutas. E, dado que o Congresso historicamente sempre cerceou o uso de escutas devido às qualidades extremamente intrusivas dessa prática, sem dúvida haveria debate vigoroso caso qualquer legislador considerasse que a resolução envolveria suspender o uso da Lei Fisa.
Qual é a razão, portanto, para que o tribunal da Fisa não tenha sido acionado para aprovar as escutas? O presidente Bush sugeriu que não havia tempo para obter os mandados. Mas isso não pode ser verdade, porque em casos de emergência a lei permite escutas sem mandado por até três dias, desde que a aprovação judicial seja obtida nesse prazo. Além disso, existem provas de que o presidente estava ciente de que as escutas sem mandado eram ilegais.

Subvertendo a democracia
Um presidente não pode cometer crime mais sério contra nossa democracia do que mentir ao Congresso e ao povo dos EUA para obter o apoio deles a uma ação militar ou guerra. Não é apenas porque convencer outras pessoas a darem suas vidas no combate a uma ameaça inexistente seja repulsivo e covarde, ou mesmo porque essas falsas declarações poderiam constituir crime em determinadas circunstâncias. O maior problema é que a decisão de ir à guerra é a mais grave que um país pode tomar, e em uma democracia o direito de tomá-la cabe ao povo e seus representantes eleitos, quando não houver ameaça de ataque iminente aos EUA.
Já que as conseqüências podem envolver a morte de centenas ou milhares de pessoas, esse tipo de fraude não pode ser tolerado. O fato de que tanto Lyndon Johnson (1963-69) quando Nixon iludiram o país para obter aprovação às suas ações militares sem que tenham passado por impeachment torna mais -e não menos- importante que Bush seja forçado a prestar contas.
Assim que se tornou evidente que não seriam encontradas armas de destruição em massa no Iraque, o presidente Bush tentou imputar a culpa pela decisão de ir à guerra a "informações inadequadas", aparentemente para demonstrar que suas alegações quanto ao arsenal iraquiano de armas de destruição em massa não constituíam trapaça deliberada. Mas informações inadequadas têm pouco ou nada a ver com os principais argumentos usados para conquistar o apoio popular a uma invasão do Iraque.
Primeiro, não existiam informações sérias -positivas ou negativas- que sustentassem a alegação do governo quanto aos contatos entre Saddam Hussein e a Al Qaeda. Mesmo assim, o governo repetidamente tentou usar essa conexão para demonstrar que a invasão era uma resposta justificada ao 11 de Setembro. A alegação era completamente falsa.
Segundo, não havia informações confiáveis que sustentassem a alegação do governo de que Saddam estava a ponto de adquirir a capacidade de produzir armas nucleares.
A maioria dos norte-americanos sabe que os motivos que Bush forneceu para a guerra se provaram falsos. Para eles, a questão é determinar se o presidente mentiu e, caso o tenha feito, o que se pode fazer para puni-lo por isso.

As leis desprotegidas
Ao assumir a Presidência, Bush fez um juramento nos termos do qual ele prometeu que protegeria a execução fiel das leis do país. Não se pode usar o impeachment para remover um presidente por incompetência administrativa.
Mas o presidente Bush é culpado de incompetência em escala tão imensa ou de indiferença tão descomunal à sua obrigação de fazer com que as leis sejam fielmente executadas que é possível questionar sua dedicação ao juramento que fez ou sua capacidade de o executar.
O exemplo mais notório é a conduta da Guerra do Iraque. De maneira irresponsável e inexplicável, o governo não forneceu aos soldados americanos estacionados naquele país coletes à prova de balas ou veículos dotados da blindagem necessária. Um estudo recente do Pentágono constatou que coletes eficientes poderiam ter salvado centenas de vidas. Por que o início das hostilidades não foi adiado até que os soldados recebessem o equipamento apropriado?
Existem inúmeras sugestões de que o momento da invasão foi determinado por motivos políticos, e não militares. Os EUA não estavam sob ameaça iminente de ataque iraquiano, e o governo sabia disso. Bush e sua equipe retardaram o esforço de marketing para "vender" a guerra até que os americanos tivessem encerrado suas férias de verão, porque "não se lança produtos novos em agosto".
E não havia planos sérios para o pós-guerra. A incompetência do presidente, em sua função de comandante supremo, quanto a proteger seus soldados por meio do armamento adequado, e sua incapacidade de planejar a ocupação custaram caro em termos de vidas e de dinheiro dos contribuintes. Trata-se de uma irresponsável e grotesca desconsideração quanto ao bem-estar das tropas e da mais completa indiferença quanto à necessidade de governo organizado, depois da ocupação de um país inimigo. Por si, essas duas falhas representam violação do juramento do presidente.

Abusos de poder
O presidente Bush proclamou recentemente que "nós não torturamos". Tendo em vista as revelações sobre as celas secretas e práticas da CIA, para não mencionar o escândalo de Abu Ghraib, a declaração beira o absurdo, e faz lembrar a famosa afirmação de Nixon: "Eu não sou um escroque".
Há ampla documentação de que os maus-tratos contra prisioneiros praticados por soldados e outros agentes americanos no Afeganistão e no Iraque foram sistemáticos e generalizados. Sob a Lei de Crimes de Guerra de 1996, qualquer cidadão americano que se envolva em assassinato, tortura ou tratamento desumano de prisioneiros de guerra está praticando um crime. Além disso, qualquer membro da hierarquia que aceite os maus-tratos em lugar de os impedir também está violando a lei. O dispositivo implementa as Convenções de Genebra.
As provas de que dispomos no momento sugerem que o presidente pode ter autorizado pessoalmente a prática de maus-tratos contra prisioneiros. Em janeiro de 2002, depois do início da Guerra do Afeganistão, Alberto Gonzales, assessor jurídico da Casa Branca, informou o presidente Bush por escrito de que maus-tratos praticados por americanos contra prisioneiros poderiam causar processos sob as leis de crimes de guerra. Em lugar de ordenar que as ações criminosas cessassem imediatamente, Bush autorizou o uso de uma interpretação elástica das Convenções de Genebra para proteger contra processos os americanos responsáveis por abusos contra prisioneiros. Em outras palavras, a resposta do presidente quando recebeu informações de abusos contra prisioneiros foi a de tomar providências que impedissem processos contra os responsáveis pelas violações, o que implica que tenha acatado os abusos e autorizado sua continuação.
Se torturas ou tratamento desumano de prisioneiros tiverem resultado dessa decisão presidencial, ele pode ser considerado pessoalmente responsável por uma violação das leis de crimes de guerra.
Mais recentemente, o presidente se opôs à emenda McCain, que proíbe a tortura, quando ela foi proposta inicialmente, e apoiou tacitamente os esforços do vice-presidente Cheney para aprovar uma emenda que permitiria que a CIA torturasse ou degradasse prisioneiros. Agora, em suas declarações ao assinar a lei, o presidente anunciou ter o direito de violar o novo estatuto, alegando uma vez mais que o comandante supremo das Forças Armadas tem o direito de violar a lei quando lhe convier.
Além disso, a despeito dos horrores do escândalo de Abu Ghraib, nenhum membro importante da hierarquia sofreu medidas disciplinares. Apenas um oficial de patente significativa foi punido. É como se o inquérito sobre Watergate tivesse se limitado a punir os responsáveis pela invasão da sede do comitê democrata, exatamente o que Nixon tentou fazer, sem conseguir. O presidente Bush não tomou medidas sérias para garantir que o escândalo fosse investigado em todas as suas dimensões, ou para responsabilizar a hierarquia, talvez porque a responsabilidade pudesse ser traçada à própria Casa Branca.

Próximos passos
Mobilizar o país e o Congresso em apoio a investigações e ao impeachment do presidente Bush é uma tarefa essencial, que já começou, mas é necessário que o processo se intensifique e cresça. O povo americano deteve a Guerra do Vietnã contra a vontade do presidente -e forçou um Congresso relutante a agir quanto ao impeachment do presidente Nixon. E pode fazer o mesmo com relação ao presidente Bush.
A tarefa envolve três elementos: cultivar o apoio público e legislativo, convencer o Congresso a empreender investigações sobre os diversos aspectos indevidos da conduta de Bush e alterar a composição partidária do Congresso nas eleições de 2006.
Por pior que Watergate tenha sido, depois da votação que autorizou o processo de impeachment, e da renúncia do presidente Nixon, o país sentiu imenso alívio. O impeachment é um procedimento tortuoso, mas, agora que o presidente Bush simplesmente desafiou o Congresso a impedir que ele viole a lei, é o mínimo necessário para proteger nosso sistema constitucional e preservar nossa democracia.


Elizabeth Holtzman, 64, é advogada. Foi deputada do Partido Democrata, por Nova York, de 1973 a 1981. Trabalhou no Comitê de Justiça da Câmara durante o processo de impeachment do presidente Richard Nixon.

Tradução de Paulo Migliacci


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