São Paulo, quarta-feira, 15 de março de 2006

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RESENHA

Até Fukuyama passa a criticar guerra

MICHIKO KAKUTANI
DO "NEW YORK TIMES"

"America at the Crossroads: Democracy, Power and the Neoconservative Legacy" (os EUA na encruzilhada: democracia, poder e o legado neoconservador), de Francis Fukuyama, oferece uma contestação contundente da guerra travada pelo governo Bush no Iraque e do papel desempenhado pelas idéias neoconservadoras -guerra preventiva, hegemonia benevolente e ação unilateral- na decisão de ir à guerra, sua implementação e conseqüências.
Essa discussão se torna ainda mais devastadora pelo fato de ter sido o autor um dos astros do pensamento neoconservador.
De fato, "America at the Crossroads" representa a mais recente e detalhada crítica da guerra no Iraque formulada desde um ponto de vista conservador.
No livro, Fukuyama, que leciona na Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins, questiona a afirmação feita por Kristol e Robert Kagan em seu livro de 2000 "Present Dangers: Crisis and Opportunity in American Foreign and Defense Policy" (perigos presentes: crise e oportunidades na política externa e de defesa dos EUA), segundo a qual outros países "consideram que têm menos a temer" do poder assustador dos EUA porque "a política externa americana é imbuída de um grau incomumente alto de moralidade". O problema dessa doutrina de "hegemonia benevolente", observa, é que "não basta que os americanos acreditem em suas boas intenções: é preciso que os não-americanos também acreditem".
Fukuyama também afirma que muitos neocons fizeram uma interpretação equivocada da queda do comunismo e do fim da Guerra Fria. Ao colocar ênfase excessiva sobre a escalada militar americana "como sendo a causa do colapso da União Soviética, quando fatores políticos e econômicos tiveram importância ao menos igual", ele afirma, os neocons voltados ao futuro chegaram à conclusão de que "a história poderia ser acelerada por meio da intervenção americana".


O governo Bush "subestimou os custos e as dificuldades da reconstrução do Iraque e de conduzir o país para uma transição democrática"

Ou seja, os neocons saltaram da premissa de que a democracia tende a expandir-se universalmente, no longo prazo, para a idéia de que esse processo histórico poderia ser acelerado pelos esforços dos EUA. Ao mesmo tempo, diz Fukuyama, esses teóricos parecem ter visto como certo que a transição rápida e relativamente pacífica à democracia e aos livres mercados feita por países como a Polônia poderia ser reproduzida em outras partes do mundo -sem levar em conta a situação das instituições, tradições e infra-estrutura locais.
Um outro fator que contribuiu para o caos do pós-guerra foi a falta de tropas em número suficiente: "O secretário da Defesa Rumsfeld queria ir ao Iraque com uma força ligeira e sair de lá rapidamente", diz Fukuyama. "Em conseqüência dessa estratégia, ele atolou as Forças Armadas americanas numa guerra de guerrilha de longo prazo".
O governo Bush, escreve Fukuyama, "subestimou tremendamente os custos e as dificuldades da reconstrução do Iraque e de conduzir o país para uma transição democrática". Ele ignorou o fato crucial de que "é preciso que existam instituições previamente instaladas para que uma sociedade possa avançar do anseio amorfo pela liberdade para um sistema político democrático consolidado e funcional, acompanhado de uma economia moderna".
Fukuyama prevê que "uma das conseqüências do fracasso percebido no Iraque será o descrédito de toda a agenda neoconservadora e a restauração da autoridade dos realistas em matéria de política externa". Ele escreve que o "neoconservadorismo, tanto como símbolo político quanto como conjunto de idéias, evoluiu e se transformou em algo que eu não posso mais subscrever".

Tradução de Clara Allain

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