São Paulo, domingo, 15 de agosto de 2004

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ABC DO ISLÃ

Entidade fundada por egípcio e libanês visa público amplo e quer evitar que muçulmanos deixem país para estudar

Brasil ganha sua 1ª "universidade" islâmica

LUCIANA COELHO
DA REDAÇÃO

Xeque Ahmed -o professor que disserta sobre hadith, os ditos do profeta Muhammad- parece não ter problemas para manter o interesse da classe. São 14 pares de olhos e ouvidos atentos numa noite de segunda-feira em São Paulo, a maioria saída de um dia intenso de trabalho para a casa espaçosa no Jardim Anália Franco. Bem-vindos à aula inaugural da primeira Universidade islâmica do país.
O curso, primeiro e único por enquanto, é de teologia islâmica, a uma mensalidade de R$ 250. Mas os planos dos fundadores, um egípcio e um libanês, são grandiosos. "A comunidade islâmica no Brasil tem cem anos e apenas três escolas, nenhuma universidade. Estamos atrasados", diz o diretor, xeque Houssam el-Boustani, 36, libanês radicado no Brasil há dez.
Ele explica animadamente que os trâmites já estão correndo para que a Unisb (sigla da "universidade") deixe de ser um curso livre e se torne realmente uma faculdade -e, depois, como promete seu nome, uma universidade, com oferta de outros cursos.
As tímidas instalações na rua Emília Maringo, que abriram as portas no último dia 2 para promover seu vestibular, também devem ser trocadas dentro de três anos por uma sede maior na mesma região, em negociação.
Nem xeque Houssam nem o presidente da instituição, o egípcio Said Basyumi Said, revelam o investimento inicial. Mas dizem que o custo mensal de manutenção da Unisb é de R$ 10 mil -além da casa, do equipamento e do material, há nove professores na folha de pagamento, para 12 disciplinas. De onde vem o dinheiro? "A comunidade aqui no Brasil ajudou", diz o xeque. O censo do IBGE em 2000 registrou 27 mil muçulmanos no país, mas a Assembléia Mundial da Juventude Islâmica no Brasil diz que eles são cerca de 1,5 milhão.
E dinheiro de fora? "Não, por enquanto não." Se os planos derem certo, no entanto, o investimento deve subir rapidamente.
Já no próximo ano, pretendem receber 80 alunos, parte dos quais poderá se instalar na Unisb como em um internato ("para evitar a dispersão do aluno"). E, embora na aula inaugural, na última segunda-feira, os 11 homens e três mulheres na classe fossem muçulmanos (a divulgação do curso se limitou às mesquitas), a intenção é diversificar o corpo discente.

Turma do fundão
Mesmo assim, as regras islâmicas devem ser obedecidas. Ao contrário da maioria dos cursos, onde o fundo da classe costuma ser reservado para os alunos mais ruidosos ou desatentos, na Unisb as últimas carteiras cabem às mulheres. Enquanto não houver alunos suficientes para dividir as turmas em femininas e masculinas, na frente sentam só eles.
Estranho? Xeque Houssam diz que ajuda a manter a concentração. "É mais confortável para elas mesmas, que não precisam ficar preocupadas, por exemplo, na hora que tiverem de abaixar para pegar algo que caiu no chão."
A direção também avisa: dentro da instituição o véu será obrigatório para professoras e alunas, sejam muçulmanas ou não. E a hora do intervalo -ou ao menos parte dela- é para rezar no oratório, construído no andar inferior.
Mas como é o primeiro dia de aula, e no primeiro dia sempre há mais leniência, Ymad Eddin Kattouma, 16, usa os longos cabelos loiros soltos e um jeans justo. Ela ainda não sabe se vai se matricular. Caso vá, terá de usar as mesmas vestes recatadas de suas colegas. Algum problema? "Nenhum", diz ela, sorridente. É o suficiente para que seus irmãos, Aleddin, 20, e Imad, 21, caiam no riso. "Olha o cabelo dela. Você acha que ela vai usar véu numa boa?", pergunta Aleddin, que, como Imad, nasceu no Líbano e veio para o Brasil na infância.
Paciência. Um professor já disse que calça jeans justa não é roupa adequada para uma muçulmana.
O irrequieto Aleddin (ou "bagunceiro", como disse seu irmão) é um bom exemplo das histórias que xeque Houssam contou para explicar a razão para criar uma universidade islâmica no país.
Com 16 anos, o pai o mandou estudar em uma escola islâmica no Líbano, em regime de internato, por dois anos. A adaptação foi difícil, como, segundo xeque Houssam, costuma ser para quase todos os brasileiros. "Até nosso fim de semana era em dias diferentes do que o das outras escolas", conta Aleddin, resignado. Mulheres, ele não via nunca.
O diretor diz que, dos brasileiros que deixam o país para, gratuitamente, estudar islamismo em locais como o Egito e a Arábia Saudita, raros alcançam o intento -desses, todos têm ascendência árabe. "Muitos alunos saem motivados, mas não agüentam um ano no internato. É muito rígido."

"Temos de nos modernizar"
O policial militar Mário Alves da Silva Filho, 36, já estava planejando se mudar para o norte da África para estudar teologia islâmica, mas a possibilidade de fazer o curso no Brasil o fez mudar de idéia. "Espero muita coisa do curso. Minha idéia é estudar a religião, mas não me profissionalizar. Sou PM há 20 anos e não pretendo mudar de profissão agora", diz.
Convertido há oito anos e, antes disso, formado em teologia cristã (estudar religião é para ele um hobby), Mário era o aluno mais participante na última segunda-feira. Além de fazer perguntas, ainda auxiliava o professor na hora de traduzir do árabe para o português citações do Alcorão.
A maioria de seus colegas, como o radialista Ahmad Adile, apresentador do programa "A Voz dos Árabes no Brasil" (Rádio Imprensa), parece ter pretensão semelhante: conhecer mais profundamente a religião e obter uma formação humanista. Mas quem quiser sai dali formado xeque (professor de islamismo).
O currículo, dividido entre xeques e professores laicos (todos brasileiros), engloba português, inglês, árabe, história, filosofia e psicologia, além das aulas sobre hadith, Alcorão, jurisprudência e crença islâmica. Tudo, prometem os professores, seguindo uma linha ampla, sem escolas específicas e sem radicalismos. "Temos de nos modernizar. Afinal, estamos no século 21", diz o diretor.
Há também aula de estudo bíblico, ministrado por um padre. Outras religiões? "O islã só reconhece outras duas religiões, o cristianismo e o judaísmo", diz xeque Houssam. E o judaísmo, será abordado? "Decidimos que não, até que esteja resolvido o conflito entre a Palestina e Israel."


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