São Paulo, sábado, 15 de outubro de 2005

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IRAQUE SOB TUTELA

Proposta que vai a plebiscito é desdenhada por sunitas; especialistas acreditam que ela piore divisão sectária

À beira da guerra civil, Iraque vota sua Carta

KAREN MARÓN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BAGDÁ

"Os sunitas não vamos votar no plebiscito para aprovar a Constituição", diz Samir, depois de fechado um acordo entre o sunita Partido Islâmico Iraquiano e os parlamentares constitucionais. A resposta da insurgência não se fez esperar: poucas horas depois, uma bomba explodiu na sede da organização em Fallujah. Ao todo, foram ontem cinco ataques a instalações do partido pelo país.
Os iraquianos votam hoje sobre a Carta, mas uma coisa parece selada há tempo. Seja qual for a decisão nas urnas, ela ameaça mergulhar o país em uma guerra civil.
"O documento atual conduz a um enfrentamento fratricida e vai agravar as tensões", diz Kanan Makiya, da Fundação Memória do Iraque. Uma vitória do "sim" não vai modificar a situação, porque a Al Qaeda exige o boicote e continuará com sua campanha terrorista. Uma vitória do "não" -para a qual são necessários dois terços dos votos em 3 das 18 governadorias iraquianas- fará o processo político voltar ao começo, tornando obrigatória a realização de novas eleições parlamentares em dezembro para novamente eleger deputados que possam redigir uma nova Carta.
Ainda que os sunitas (embora minoritários no país) sejam maioria em três das governadorias, há dúvida se eles reunirão os votos necessários para vetar a Constituição.
"Este plebiscito não tem valor. Estamos sob ocupação americana e odiamos os americanos", diz Samir, criticando o acordo de última hora. Como boa parte dos sunitas, ele não participa desse alvoroço pré-eleitoral, que envolve xiitas e curdos. O Partido Islâmico Iraquiano foi a única representação do grupo a apoiar o acordo.
Poderosa no regime de Saddam Hussein (1979-2003), essa minoria teme a exclusão política. Pior, teme a divisão do país em zonas de controle dos diferentes grupos étnico-religiosos, pela qual a autonomia xiita vai se somar à curda, e os sunitas serão relegados à única região do país sem petróleo.
A isso se soma a determinação de que o Partido Baath, de Saddam, "não poderá fazer parte do pluralismo político do Iraque". "Fui do Baath, mas agora tenho que mentir, pois somos perseguidos", diz Gharib, após meses escondendo sua filiação política -a mesma da maioria dos sunitas.
A política contrária a tudo o que provém do Baath somada a ações militares em áreas tribais sunitas como Fallujah cria uma situação em que um grupo majoritariamente secular e pró-ocidental passou a colaborar com o wahabismo radical da Al Qaeda.
Isso coincide com a rejeição aos xiitas. Enquanto Abu Musab al Zarqawi (líder da Al Qaeda no Iraque) os considera "infiéis e apóstatas", os sunitas os vêem como "traidores" e principais artífices da queda de Saddam.
"Os xiitas são o Irã. Não são árabes", fala Gharib. "Ali al Sistani (o grão aiatolá dos xiitas no Iraque) é iraniano -ele nunca quis se naturalizar. Eles querem converter o Iraque em uma extensão do Irã", enquanto uma elite pró-iraniana ocupa os postos-chaves do governo (o presidente Jalal Talabani lutou do lado iraniano durante a guerra que opôs Irã e Iraque na década de 1980, e o premiê Ibrahim al Jafaari é líder do partido Dawa, com sede no país vizinho).
Um catedrático sunita que emigrou do Iraque há 20 anos e hoje se encontra no país em uma visita esporádica diz que a vitória xiita é inaceitável. "Eles podem ganhar as eleições, mas é preciso recordar que Síria, Jordânia, Arábia Saudita e Kuait são sunitas. Eles jamais vão permitir que xiitas tomem o poder", afirma, enquanto desenha um mapa da região.
Sob o medo de uma guerra civil, as forças americanas no país e o governo interino iraquiano reforçaram a segurança para o plebiscito. Na capital as ruas estão semidesertas, e as repartições públicas e a maioria dos estabelecimentos comerciais, fechados. Um toque de recolher começa às 18h e dura 12 horas. Também tentam atrair mais gente às urnas. Os muros das grandes avenidas estão cheios de cartazes convidando a votar.
No plano inicial, a votação de hoje coroaria o processo político transitório estabelecido pelos EUA. O sucesso ainda é dúvida.


A argentina Karen Marón é especializada na cobertura de conflitos armados, como na Colômbia e no Oriente Médio

Com agências internacionais

Tradução de Clara Allain


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