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IRAQUE SOB TUTELA
Proposta que vai a plebiscito é desdenhada por sunitas; especialistas acreditam que ela piore divisão sectária
À beira da guerra civil, Iraque vota sua Carta
KAREN MARÓN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BAGDÁ
"Os sunitas não vamos votar no
plebiscito para aprovar a Constituição", diz Samir, depois de fechado um acordo entre o sunita
Partido Islâmico Iraquiano e os
parlamentares constitucionais. A
resposta da insurgência não se fez
esperar: poucas horas depois,
uma bomba explodiu na sede da
organização em Fallujah. Ao todo, foram ontem cinco ataques a
instalações do partido pelo país.
Os iraquianos votam hoje sobre
a Carta, mas uma coisa parece selada há tempo. Seja qual for a decisão nas urnas, ela ameaça mergulhar o país em uma guerra civil.
"O documento atual conduz a
um enfrentamento fratricida e vai
agravar as tensões", diz Kanan
Makiya, da Fundação Memória
do Iraque. Uma vitória do "sim"
não vai modificar a situação, porque a Al Qaeda exige o boicote e
continuará com sua campanha
terrorista. Uma vitória do "não"
-para a qual são necessários dois
terços dos votos em 3 das 18 governadorias iraquianas- fará o
processo político voltar ao começo, tornando obrigatória a realização de novas eleições parlamentares em dezembro para novamente eleger deputados que possam
redigir uma nova Carta.
Ainda que os sunitas (embora
minoritários no país) sejam
maioria em três das governadorias, há dúvida se eles reunirão os
votos necessários para vetar a
Constituição.
"Este plebiscito não tem valor.
Estamos sob ocupação americana
e odiamos os americanos", diz Samir, criticando o acordo de última hora. Como boa parte dos sunitas, ele não participa desse alvoroço pré-eleitoral, que envolve
xiitas e curdos. O Partido Islâmico
Iraquiano foi a única representação do grupo a apoiar o acordo.
Poderosa no regime de Saddam
Hussein (1979-2003), essa minoria teme a exclusão política. Pior,
teme a divisão do país em zonas
de controle dos diferentes grupos
étnico-religiosos, pela qual a autonomia xiita vai se somar à curda, e os sunitas serão relegados à
única região do país sem petróleo.
A isso se soma a determinação
de que o Partido Baath, de Saddam, "não poderá fazer parte do
pluralismo político do Iraque".
"Fui do Baath, mas agora tenho
que mentir, pois somos perseguidos", diz Gharib, após meses escondendo sua filiação política -a
mesma da maioria dos sunitas.
A política contrária a tudo o que
provém do Baath somada a ações
militares em áreas tribais sunitas
como Fallujah cria uma situação
em que um grupo majoritariamente secular e pró-ocidental
passou a colaborar com o wahabismo radical da Al Qaeda.
Isso coincide com a rejeição aos
xiitas. Enquanto Abu Musab al
Zarqawi (líder da Al Qaeda no
Iraque) os considera "infiéis e
apóstatas", os sunitas os vêem como "traidores" e principais artífices da queda de Saddam.
"Os xiitas são o Irã. Não são árabes", fala Gharib. "Ali al Sistani (o
grão aiatolá dos xiitas no Iraque) é
iraniano -ele nunca quis se naturalizar. Eles querem converter o
Iraque em uma extensão do Irã",
enquanto uma elite pró-iraniana
ocupa os postos-chaves do governo (o presidente Jalal Talabani lutou do lado iraniano durante a
guerra que opôs Irã e Iraque na
década de 1980, e o premiê Ibrahim al Jafaari é líder do partido
Dawa, com sede no país vizinho).
Um catedrático sunita que emigrou do Iraque há 20 anos e hoje
se encontra no país em uma visita
esporádica diz que a vitória xiita é
inaceitável. "Eles podem ganhar
as eleições, mas é preciso recordar
que Síria, Jordânia, Arábia Saudita e Kuait são sunitas. Eles jamais
vão permitir que xiitas tomem o
poder", afirma, enquanto desenha um mapa da região.
Sob o medo de uma guerra civil,
as forças americanas no país e o
governo interino iraquiano reforçaram a segurança para o plebiscito. Na capital as ruas estão semidesertas, e as repartições públicas
e a maioria dos estabelecimentos
comerciais, fechados. Um toque
de recolher começa às 18h e dura
12 horas. Também tentam atrair
mais gente às urnas. Os muros das
grandes avenidas estão cheios de
cartazes convidando a votar.
No plano inicial, a votação de
hoje coroaria o processo político
transitório estabelecido pelos
EUA. O sucesso ainda é dúvida.
A argentina Karen Marón é especializada na cobertura de conflitos armados, como na Colômbia e no Oriente Médio
Com agências internacionais
Tradução de Clara Allain
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