São Paulo, sábado, 15 de outubro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ÁFRICA

Inimigos da guerra civil no país, hoje conciliados, discutem se imagem de arma deve permanecer em símbolo nacional

Debate sobre bandeira inflama Moçambique

MICHAEL WINES
DO "NEW YORK TIMES"

Quando a Renamo, de direita, e a Frelimo, de esquerda -as duas forças políticas dominantes em Moçambique-, encerraram 16 anos de guerra civil, em 1992, selaram um pacto para esquecer as inimizades passadas. Redigiram uma Constituição nova, promoveram eleições nacionais e, três anos atrás, escolheram um novo hino nacional.
Poucos outros países neste continente fustigado por guerras têm se saído tão bem quanto Moçambique. José Manteigas, deputado da Renamo vindo da Província de Zambézia, fala com orgulho: "Moçambique é um modelo para a África".
E ele tem razão. Com uma exceção: a antipática Kalashnikov que aparece na bandeira nacional.
O país está promovendo um concurso para a escolha de versões renovadas da bandeira e do emblema nacional, que -como o hino nacional e a Constituição descartados- datam dos tempos da guerra civil, quando a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) dominava o país, e a Renamo (Resistência Nacional Moçambicana) era um exército guerrilheiro. Oficialmente, o concurso é o último passo, previsto há muito tempo, no acordo entre os dois partidos para enterrar de vez seu passado de conflitos.
Mas as coisas não vêm funcionando exatamente conforme o previsto. Em setembro, quando um comitê de cinco juízes terminou de analisar as 169 propostas de bandeira enviadas ao concurso, muitos partidários da Renamo insistiram que dois elementos chaves tanto da bandeira quanto do emblema -o fuzil automático Kalashnikov AK-47 e uma grande estrela- precisam ficar de fora da próxima bandeira. Muitos partidários da Frelimo insistem que, pelo contrário, o fuzil e a estrela devem permanecer.
Na verdade, muitos partidários da Frelimo dizem que a bandeira e o emblema não deveriam mudar, e ponto. Para eles, os seguidores da Renamo, que constituem minoria na Assembléia da República, deveriam levar em conta que não têm votos suficientes para modificar nem sequer um nome de rua, muito menos os símbolos nacionais.
Longe de unir antigos inimigos num momento propício para fotos comemorativas, a discussão em torno da bandeira parece ter inflamado as paixões políticas e transformado os programas de rádio matinais da capital Maputo, que incluem telefonemas de ouvintes recebidos ao vivo, em acirradas manifestações pró e contra a bandeira.
"É uma discussão aberta que está acontecendo na televisão, na rádio, nos restaurantes e cafés", disse Lourenço do Rosário, vice-reitor do Instituto Superior Politécnico e Universitário de Maputo e um dos luminares intelectuais da cidade. "É um debate intenso, e tanto jovens quanto adultos possuem opiniões contundentes a esse respeito."

Má-fé
José Manteigas, que integra a comissão parlamentar encarregada da reformulação dos símbolos nacionais moçambicanos, afirma que representantes da Frelimo agitaram a discussão de forma intencional e de má-fé ao montar uma campanha de relações-públicas contra a modificação dos símbolos.


É uma discussão aberta que está acontecendo na televisão, na rádio, nos restaurantes e cafés. Jovens e adultos têm opiniões contundentes

Mas Manuel Tomé, o presidente nacional da Frelimo, diz que a população gosta da bandeira e do emblema do jeito como estão e que a exigência de reformulações feita pela Renamo não passa de tentativa do partido de mostrar sua força.
A Frelimo já concordou com a Renamo em trocar o hino nacional moçambicano, que começava com o brado de "Viva a Frelimo!" e prometia que "nosso país será o túmulo do capitalismo e da exploração", por um hino otimista que fala de montes, rios e "flores brotando do chão do teu suor". Para Tomé, mudar mais um símbolo nacional em nome da boa convivência política é algo que não se justifica.
"Não quero esvaziar essa discussão de maneira antecipada, mas essa bandeira nacional representa nossa unidade nacional", disse o presidente da Frelimo em entrevista concedida em Maputo. "Foi com base nesta bandeira que unimos a população contra o colonialismo."
Não há dúvida de que a bandeira representa a identidade da Frelimo. Ela data de 1962, justamente o ano em que a Frelimo foi criada por exilados moçambicanos que se opunham ao domínio dos portugueses.
Os exilados adotaram uma bandeira em grande parte idêntica à atual, formada por faixas horizontais verde, negra, amarela e branca, com um triângulo vermelho que avança desde o lado esquerdo.
Em 1983, quando Moçambique se tornou um Estado unipartidário sob a égide da Frelimo, o governo acrescentou à bandeira uma versão simplificada do emblema nacional, uma estrela única atrás de uma enxada, um Kalashnikov e um livro aberto. O emblema nacional também possui um sol, uma coroa feita de espigas de arroz e uma espiga de milho.
Os críticos da bandeira e do emblema não têm queixas contra o livro, as faixas, o milho ou a enxada. Mas, para os partidários da Renamo -que, em seu passado contra-revolucionário, foram reacionários intransigentes-, o fuzil e a estrela constituem lembretes dolorosos da época em que a Frelimo era um partido de revolucionários marxistas.
A AK-47 é um pomo de discórdia especialmente intragável. "Um país pacífico não deve ter uma bandeira que ostenta uma arma", disse Manteigas, o deputado da Renamo. "Para as crianças que estão crescendo hoje, em tempos de paz, não faz sentido uma bandeira com uma arma."
Quanto à estrela, disse ele, qualquer pessoa que já viu a bandeira soviética saberá que a estrela é símbolo do comunismo. E é verdade que a estrela amarela da bandeira moçambicana parece saída de uma bandeira anterior da Frelimo com um martelo e uma enxada atravessados sob uma estrela amarela -uma imagem que é parenta consanguínea do velho martelo e foice soviéticos.
Os defensores da Frelimo consideram as críticas exageradas. O Kalashnikov, dizem eles, simboliza a determinação do povo moçambicano de defender sua terra, e o fato de ser símbolo russo é mera coincidência. A estrela apenas significa solidariedade com os africanos. A faixa horizontal negra também seria símbolo da África.
Para Joaquim Chissano, presidente de Moçambique por 19 anos, se a estrela única moçambicana fosse símbolo do comunismo, então a bandeira norte-americana, com suas múltiplas estrelas, situaria os EUA entre os países mais esquerdistas do mundo.

Divisão
É válido perguntar por que um povo que conseguiu encerrar uma guerra civil que matou 1 milhão de civis está encontrando tanta dificuldade em chegar a um acordo em torno de imagens costuradas num pedaço de pano.
Uma resposta pode ser que a população moçambicana é evidentemente dividida em vários outros quesitos. A rádio estatal faz transmissões em 21 línguas; as fronteiras nacionais, desenhadas pelo ocupante colonial, ignoram as fronteiras étnicas. É possível que a maior força unificadora de Moçambique tenha sido o desejo de expulsar os senhores coloniais portugueses e a língua portuguesa que eles deixaram no país.
Qual dos lados está com a razão? Talvez isso não importe. Qualquer mudança na bandeira e no emblema terá que ser aprovada por dois terços da Assembléia da República, composta de 250 membros. E a Renamo, que tem apenas 90 deputados, controla pouco mais de um terço dela.
O escritor Tomas Mário, de Maputo, comentou: "Se a questão for a voto, é evidente que a Frelimo vai impor uma derrota avassaladora à Renamo e que os símbolos vão continuar como estão. Mas, em nome da democracia, a Frelimo está propondo a votação".

Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Indústria cultural: EUA se isolam em discussão da Unesco sobre cultura
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.