São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2006

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Artigo

Entre política social e mercado

Nobel da Paz amplia o sucesso dos microcréditos, que dependem da qualidade das redes de conhecimento local; expansão é difícil, e demanda é muito maior que oferta

GILSON SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

O sucesso do microcrédito, idéia alardeada em 2005 pela ONU e consagrada com o Prêmio Nobel da Paz ao pioneiro Muhammad Yunus, de Bangladesh, criador do Grameen Bank ("banco da aldeia"), depende da qualidade das redes de conhecimento local. São operações em que o capital social vale tanto ou até mais que o próprio capital financeiro. Por depender tanto do conhecimento da realidade da "aldeia", sua expansão é difícil e a demanda infinitamente superior à oferta.
O microcrédito está na fronteira entre mercado e política social, funciona em geral sob o controle de uma organização não-governamental (ONG) local e não sobreviveria sem políticas públicas associadas. No Brasil, diferentes versões do que se poderia considerar microcrédito têm sido oferecidas por bancos estatais como o BNDES, o Banco do Nordeste, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e iniciativas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).
As estimativas da Grameen Foundation sugerem que há demanda para operações de mais de US$ 300 bilhões, frente a uma oferta da ordem de apenas US$ 4 bilhões.
O conhecimento local, a confiança que se constrói por meio da solidariedade e por laços de vizinhança e a necessária capilaridade extrema da rede de relacionamentos desse sistema são parte da explicação para a aversão dos bancos privados a esse tipo de operação, de custos elevados na organização e no monitoramento das milhões de microcontas. Mas a proliferação de redes digitais colaborativas tem contribuído para uma significativa redução de custos, viabilizando verdadeiros "bancos locais".

Finanças de proximidade
O Nobel de Yunus certamente ampliará o interesse e até o prestígio do microcrédito e de projetos similares. Mais que a dimensão "micro", importa nessas operações o seu caráter solidário, o capital social que se associa a cada operação individual. Ricardo Abramovay, professor da USP, tem alertado para a ênfase excessiva em microcrédito quando o que mais importa é a natureza das redes e organizações de "finanças de proximidade", capazes de converter redes de relações sociais entre indivíduos em redução de custos de transações bancárias.
Na sua visão, é o conhecimento entre as pessoas, produto de relações de vizinhança, que reduz a assimetria de informação típica de qualquer transação convencional. Ele também alerta para o papel das finanças de proximidade não apenas como operações de repasse de fundos públicos. Sua principal virtude consistiria em estimular a poupança dos integrantes das redes sociais em que é implementada.
No Brasil, a trajetória do microcrédito tem sido instável, com altos e baixos. O BNDES chegou a interromper as operações quando se constatou irregularidades em ONGs. Há um risco, típico do "onguismo", de surgirem intermediários que atuam como exploradores da miséria alheia.
Segundo Elvio Lima Gaspar, diretor do BNDES responsável pela área social, houve um amadurecimento no sistema na medida em que outra precisão conceitual foi introduzida, privilegiando o "microcrédito produtivo orientado" e articulando o direcionamento de recursos a políticas de integração regional e sub-regional.
A inadimplência no Brasil, nesse tipo de operações, tem sido da ordem de 3% e, em alguns casos, fica abaixo de 0,8%. Nos próximos cinco anos, entre operações em curso e já aprovadas, cerca de R$ 59 milhões serão direcionados ao microcrédito, com geração de 1,4 milhão de empregos.
Há estudos em curso, mobilizando equipes do BNDES e do Ministério do Desenvolvimento Social, para articular o cadastro do Bolsa-Família com a política nacional de microcrédito produtivo orientado. Segundo o BNDES, está em fase final de preparação uma nova política em que o microcrédito será uma ponte entre o estágio mais assistencialista e emergencial do Bolsa-Família e a etapa mais avançada em que despontam as micro e pequenas empresas.


GILSON SCHWARTZ, economista e sociólogo, é professor da ECA-USP e diretor da Cidade do Conhecimento (www.cidade.usp.br).


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