São Paulo, segunda-feira, 15 de novembro de 2010

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Africanos se arriscam para chegar à Europa

No norte do Marrocos, Folha acompanha artimanhas de homens que chegam a se esconder em eixos de caminhão

"Haragas", como são chamados, sonham em cruzar os 14 km que separam Marrocos do território espanhol

SAMY ADGHIRNI
ENVIADO ESPECIAL A TÂNGER (MARROCOS)

Meia-noite no porto de Tanger Med, extremo norte do Marrocos.
Quatro jovens caminham agachados e em silêncio rente à cerca do pátio que abriga caminhões de carga prontos para embarcar nos navios com destino à Europa.
Os jovens penetram do outro lado da grade por uma fresta e, em segundos, se dispersam entre as dezenas de caçambas enfileiradas.
Um deles, Ahmed, se alojou no eixo das rodas traseiras de um caminhão com placa espanhola. E lá pretende se esconder até o veículo desembarcar no seu porto de chegada.
Seguranças com cães farejadores percorrem o pátio. O vento forte e gelado despista os animais, que latem sem achar o alvo.
Ahmed quer ser um "haraga", um queimador de fronteira, em árabe, e seguir os passos daqueles que transformaram os 14 km de mar que separam a África da Europa em um dos mais antigos corredores de imigração ilegal no mundo.
A Folha, que acompanhou a cena do embarque clandestino no caminhão, não soube se Ahmed conseguiu alcançar a outra margem do estreito de Gibraltar ou se ele foi detectado pela polícia nos procedimentos de segurança que antecedem o embarque dos caminhões -o mais temido é o scanner na lataria, que rastreia clandestinos pelo calor corporal.
"Tentarei quantas vezes forem necessárias", disse Ahmed. Morador de Agadir, no sul marroquino, decidiu se arriscar após receber telefonema de um amigo que conseguiu chegar à Espanha, onde descolou emprego informal no setor agrícola.
Os clandestinos que a polícia barra são geralmente colocados num camburão e despejados na cidade de Tânger, a 40 km. Há relatos de espancamento e extorsão.
As ruas de Tânger, tradicional reduto do turismo boêmio, estão cheias de aspirantes a "haragas".
Vêm de diferentes regiões do país e são reconhecíveis pelas roupas surradas e aspecto sujo. Quase todos dormem na rua.

CONCORRÊNCIA
Enquanto esperam a hora de tentar ou retentar a travessia, ganham trocados carregando bagagens na rodoviária ou vendendo haxixe para turistas europeus.
Manco de nascença e sem ter sequer um documento de identidade, Abdellah, 27, orgulha-se de já ter entrado clandestinamente duas vezes na Europa.
Na primeira, em 2005, ele nadou nas águas do porto de Casablanca, no litoral Atlântico, com uma corda e um gancho que lhe permitiram subir no convés de um navio de passageiros.
Por meses, viveu de pequenos furtos em lojas de conveniência. "É fácil. Basta retirar as etiquetas e colocar tudo no bolso", relata. Num simples controle de identidade pela polícia, foi preso e deportado.
Abdellah voltou à Espanha no ano passado. Desta vez, depois de subornar um motorista de caminhão para viajar escondido na boleia.
Sem poder trabalhar legalmente, rendeu-se ao dinheiro fácil do narcotráfico.
Acabou detido com nove quilos de haxixe e, em abril, foi novamente devolvido ao Marrocos.
Abdellah exibe uma foto da mãe e se emociona. "Sinto muita saudade dela, mas não posso visitá-la. Ela acha que ainda estou na Europa".
Imigrantes do Mali, Mauritânia e Senegal, entre outros países, também povoam as ruas de Tânger.
Muitos atravessaram o Saara a pé para também se tornar "haragas". São detestados pelos clandestinos marroquinos, que os encaram como concorrentes.
Em vez de se esconder em caminhões, como os marroquinos, os subsaarianos geralmente pagam o equivalente a R$ 4.000 por um lugar nas balsas que atravessam o estreito de Gibraltar.
Apesar de muitas balsas virarem na travessia, despejando corpos nas praias das duas margens, o método é tido como o mais certeiro para chegar à Europa.
As balsas saem de vários pontos secretos do litoral. A Folha esteve em um dos mais usados pelos coiotes, uma prainha rochosa situada perto do farol de Mnar, ao pé de uma montanha.
Só se chega no local descendo uma trilha íngreme, que corta uma floresta de arbustos espinhosos.
O caminho é cheio de lixo e excremento deixados pelos "haragas" que passaram noites no mato.
Abdellah, o ex-vendedor de haxixe, está juntando dinheiro para voltar à Europa.
"Não dá para ficar aqui. Na Europa até quem é pobre tem o mínimo para viver. Isso se chama dignidade".


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