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COMENTÁRIO
Imagens da TV desumanizam ditador deposto
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
Saddam Hussein foi ontem objeto de uma operação de mídia
em que os Estados Unidos procuraram e conseguiram desumanizá-lo com invejável competência.
Cabelos longos, sujos e desalinhados e barba crescida, ele surgiu em vídeo divulgado pelo comando militar norte-americano
com a aparência de um indigente.
Era uma fera circunstancialmente amansada, examinada por
um médico cujas mãos protegidas por luvas de borracha colhiam amostras para um exame
de DNA. Numa cena que poderia
também -e a ambiguidade é evidente- relacionar-se à higiene
pela caça às pulgas ou ao exame
dos dentes de um animal.
É lógico que o tratamento recebido sábado à noite por Saddam
foi bem menos dolorido que o reservado por seu sanguinário regime a seus próprios prisioneiros.
Além disso, ele não apareceu algemado. Não o torturaram ou o fizeram desfilar carnavalescamente
pelas ruas de Bagdá.
Mesmo assim, o propósito era o
de destroná-lo energicamente no
plano simbólico, de modo a tirar
dele reminiscências residuais de
autoridade, dignidade e respeito.
A imagem se destinava ao consumo interno iraquiano, e com ao
menos duas finalidades. Aos partidários da ditadura deposta era
um recado de que a resistência à
ocupação militar norte-americana estava acéfala. Para as vítimas
numerosas da ditadura ou para as
lideranças muçulmanas reprimidas era o sinal de que o pós-saddamismo se tornava uma vez por
todas irreversível.
E ainda sobrou para o consumo
simbólico nos demais países do
mundo árabe. Em alguns momentos dos últimos 25 anos, o
Saddam agora desarmado procurou e conseguiu se impor como liderança regional. Tentou encarnar a racionalidade do Estado laico diante do islamismo xiita do
Irã. Tentou ainda atropelar princípios da ONU e de uma coligação
de interesses ao ocupar o Kuait.
Mas, no sábado à noite, o homem que se julgava sucessor de
Nabucodonosor parecia uma fera
patética, impotente. Bem mais
que sua estátua derrubada em
abril no centro de Bagdá, a imagem que restará dele será agora a
de um médico militar inimigo
que o examina como se ele fosse
um bicho, ou no máximo um prisioneiro sem vontade própria.
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