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São Paulo, segunda-feira, 15 de dezembro de 2003

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COMENTÁRIO

Imagens da TV desumanizam ditador deposto

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Saddam Hussein foi ontem objeto de uma operação de mídia em que os Estados Unidos procuraram e conseguiram desumanizá-lo com invejável competência.
Cabelos longos, sujos e desalinhados e barba crescida, ele surgiu em vídeo divulgado pelo comando militar norte-americano com a aparência de um indigente.
Era uma fera circunstancialmente amansada, examinada por um médico cujas mãos protegidas por luvas de borracha colhiam amostras para um exame de DNA. Numa cena que poderia também -e a ambiguidade é evidente- relacionar-se à higiene pela caça às pulgas ou ao exame dos dentes de um animal.
É lógico que o tratamento recebido sábado à noite por Saddam foi bem menos dolorido que o reservado por seu sanguinário regime a seus próprios prisioneiros. Além disso, ele não apareceu algemado. Não o torturaram ou o fizeram desfilar carnavalescamente pelas ruas de Bagdá.
Mesmo assim, o propósito era o de destroná-lo energicamente no plano simbólico, de modo a tirar dele reminiscências residuais de autoridade, dignidade e respeito.
A imagem se destinava ao consumo interno iraquiano, e com ao menos duas finalidades. Aos partidários da ditadura deposta era um recado de que a resistência à ocupação militar norte-americana estava acéfala. Para as vítimas numerosas da ditadura ou para as lideranças muçulmanas reprimidas era o sinal de que o pós-saddamismo se tornava uma vez por todas irreversível.
E ainda sobrou para o consumo simbólico nos demais países do mundo árabe. Em alguns momentos dos últimos 25 anos, o Saddam agora desarmado procurou e conseguiu se impor como liderança regional. Tentou encarnar a racionalidade do Estado laico diante do islamismo xiita do Irã. Tentou ainda atropelar princípios da ONU e de uma coligação de interesses ao ocupar o Kuait.
Mas, no sábado à noite, o homem que se julgava sucessor de Nabucodonosor parecia uma fera patética, impotente. Bem mais que sua estátua derrubada em abril no centro de Bagdá, a imagem que restará dele será agora a de um médico militar inimigo que o examina como se ele fosse um bicho, ou no máximo um prisioneiro sem vontade própria.


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